segunda-feira, maio 31, 2004

Delirium V *

A dança de fragmentos ao vento prossegue pela encosta de um morro próximo acompanhada pelas ondas verdes da vegetação. Cães de rua saltam no meio do turbilhão caçando folhas como se fossem pequenos pássaros ou perseguem os próprios rabos.

Atrás de uma árvore, sob o que parece ser a sombra de um grande chapéu de mosqueteiro brilha um olhar desconfiado. Mas isso só dura um instante, depois apenas um vulto se precipita agilmente morro a baixo enquanto as águas da Rodrigo de Freitas se arrepiam ante a passagem do vento frio que faz o rapaz às margens fechar mais o casaco desfarçando o frio que sente na esperança de impressionar a bela moça que passa!

Entre o frio e o deleite ele sequer nota os pássaros que voam alto no céu, mas que o menino de rua cheirando cola abaixo de uma árvore próxima vê como peixes coloridos voadores...

sábado, maio 29, 2004

Delirium IV *

A janela no décimo quarto andar sacoleja como se fosse estourar ante a pressão do vento que ergue jornais, folhas e sacos plásticos de mercado além do cume dos edifícios.

Atrás do vidro, enrolado em um cachecol, um velho senhor, bem além dos oitenta anos, contempla o tempo que voa junto com o vento. No seu reflexo que paira sobre a imagem dos outros prédios em frente enxerga o mapa de rugas fundas, o nariz avantajado e irregular com a pele coberta de crateras de cravos. Os olhos se apertam com sono e dor. A imagem no vidro então se estica e perde as rugas, os cabelos brancos desgrenhados e ralos novamente se arrumam em um topete castanho escuro e selvagem. O cachecol se converte em esvoaçante linho enrolado no pescoço para enfrentar o frio do vôo em bimotores abertos que ele dominava quando jovem.

A janela se abre repentinamente, por acidente ou pela força inconsciente das suas próprias mãos, ele não sabe. O turbilhão invade a sala jogando pelo chão retratos, vasos e papéis. A boca ressecada se estica no mais triunfante sorriso e os olhos se fecham para conter apenas para ele seus sonhos...

quinta-feira, maio 27, 2004

Delirium III *

Ruussssss vrrra suisssssh o skatista passa sem notar a confusão, corta o caminho entre carros e pessoas que atravessam a rua despertando alguns gritos e palavrões assustados.

O vento forte percorre as ruas como rios revoltos, carregando folhas entre os labirintos de pedestres que andam com dificuldade. Uma moça jovem, não mais de vinte anos, quase se choca com o skatista e o turbilhão de coisas que voam.

Olhos fechados, a boca serrada, a saia leve esvoaça e revela belas pernas. A cada passo sente a pela arranhada pelos grãos de areia arremessados contra ela das obras do metrô.seu corpo curvado lutando contra a ventania, o rosto franzido e irritado. Caminha como se atravessasse um deserto selvagem fantasiando perigos e poderosos beduínos prestes a sequestrá-la.

Uma lufada mais violenta de vento se ergue subindo os morros, balançando violentamente as janelas e batendo portas ruidosamente... A moça grita:

- P...

terça-feira, maio 25, 2004

Delirium II

O encontro da Nossa Senhora de Copacabana com a Figueiredo Magalhães é uma pororoca de sons, cores e do bafo quente da pressa urbana.

Virando a esquina uma senhora se precipita em passos rápidos e curtos com a bolsa grudada entre o braço e a roupa cara, mas já desbotada. O senho franzido, os olhos inquietos girando em busca de perigos invisíveis. Uma das mãos segura o nariz e o aperta enquanto os lábios se esgarçam com nojo da figura que acaba de ficar para trás envolta em barbas emaranhadas e sebosas.

Um berro repentino rasga todos os outros sons, pessoas se congelam entre um passo e outro virando-se para ver, mas lá está a velha estatelada no chão depois de tropeçar. De todos os lados surgem mãos solícitas e logo ela está novamente de pé, o esgar de nojo substituído pelo embaraçado sorriso amarelo.

segunda-feira, maio 24, 2004

Delirium I

O poste oscila levemente quando passam os ônibus afoitos, tem que olhar com atenção para ver e isto é exatamente o que o mendigo faz naquele momento, sentado no chão sujo e coçando a barba emaranhada e encardida. Seu olhar perdido e catatônico se hipnotiza pelo poste oscilante.

De seus bolsos rasgados escapam trapos e tiras de papel higiênico barato enquanto a poeira levantada pelas pessoas que passam apressadas se embrenha em seus cabelos.

As unhas são garras encrustadas de sujeira negra como o óleo e somem para dentro das calças largas e coçam a flácida pele íntima.

Ao seu redor a luz se curva à sombra, ao ocaso de uma vida largada ao meio dia de outono.

Em terra de cego quem tem um olho...

Giordando Bruno, Galileu, Bertrand Russel, Frei Betto e tantas outras vozes dissonantes gritam todos os dias a resposta:
É herege, é louco, é roto!

Vivemos entre a cruz do crescimento desordenado e a espada fria do julgamento apressado. Em que mãos deixaremos pousar sua empunhadura?

quinta-feira, maio 20, 2004

Depois do trabalho

- Cansado, mulher! Tô cansado...

Sua voz soa fraca, grave e suspirada, se atira na cama soltando um gemido profundo e reverberante que, fraco e cansado, morre antes de quebrar o silêncio dominado pelas sombras do sol que já se põe do outro lado da janela de madeira fechada. A pouca luz entre pelas frestas das ripas carcomidas pelo tempo.

A camisa encardida e puída jogada em um canto do barraco, os sapatos arranhados de couro surrado pelo trabalho exalam aquele odor de pés fechados por quase um dia inteiro.

Seus olhos embaçados e avermelhados de cachaça se perdem em algum lugar entre as sombras nos cantos do quarto sem se importar com as crianças que gritam do lado de fora brincando de polícia e bandido.

A mulher vem arrastando chinelos, uma moça bonita com menos de trinta, mas encurvada pelo peso do sorriso que cobre seu rosto e reflete em seus olhos fazendo-os brilhar!

- Chega para lá João!

Ela lhe dá um tapinha, o homem rude e grande sorri e se espreme na cama para lhe dar espaço e a recebe nos braços cansados.

O cheiro do xampu barato o envolve, com um carinho nos cabelos dela ele mergulha no aroma conhecido e familiar e, com um sorriso no rosto, adormecem...

terça-feira, maio 18, 2004

Feira

O costume transforma a mais bela das cenas em uma imagem borrada pelas tintas do cotidiano.

Uma grande praça coberta por barracas de madeira repletas de legumes, frutas, verduras, peixes e ervas de todas as cores, de todos os cheiros. Um rasgo no cenário diário da cidade que se abre apenas uma vez por semana e onde circulam todo tipo de pessoas; do feirante à velhinha aposentada e viúva passando pelos pais novatos que levam o bebê de colo

- Limão, maracujá, alho, patroa?

- Olha a laranja lima docinha! Lote de pomcam só um Real! Ai meu pé! Vai um aipim, tá uma manteiga! Ó a espiga, é para acabar! Tem troco para dez?

E as vozes se misturam na enebriante cacofonia de cheiros e sons e imagens para, em algumas horas, sumir sem deixar traço até que outra terça-feira alcance aquela praça.

segunda-feira, maio 17, 2004

Esperança

Sobre o largo viaduto motoristas assustados
No ar o zumbido grave dos projéteis
Relâmpagos e o pipocar das armas
Favela vertical
polícia
Crime

Entre montes de lixo corre a pequena
Olhos entre frestas arregalam-se
Vai morrer! Vai morrer!

O estrépito se afasta mergulhando
Entre casas de madeira
ruas estreitas

Sozinha com sua boneca
Sentada tranqüila
olhos negros,
pele marrom
cachos

canta Esperança...

Crente

"... e que nosso senhor perdoe meus pecados e abençoe toda a minha família, amém!"

Ela termina sentindo os joelhos doerem levemente depois da longa oração, mas o coração leve e o sorriso da certeza das bençãos no rosto compensam o longos minutos diários diante da pequena banqueta de madeira crua e mal pregada que fica encostada à parede de tijolos, bem sob a janela por onde entra a luz forte do sol e a brisa do mar distante lá do outro lado da favela.

Fazendo o sinal da cruz ela observa o pequeno crucifixo sobre a banqueta, bem ao lado do livro de cânticos, as únicas coisas que ela mantém em seu simples altar!

O dia que começa com uma oração é um dia que pertence ao senhor! E ela segue os seus afazeres cantarolando. A comida do seu marido, vigia noturno, precisa ficar pronta antes das 9h da manhã pois lodo depois ela precisa sair para o cabeleleiro onde trabalha.

domingo, maio 16, 2004

Preconceitos

Depois da chuva o frio se deita sobre o Rio de Janeiro como o véu gélido da noite que persiste mesmo depois que o sol se levanta.

O metrô nos acolhe com um abraço morno enquanto corremos para pegar o trem que espera na estação.

Nem bem sentamos e surge à porta uma imagem adolescente, destas que vemos todo o tempo nas ruas. Gorro preto de lâ, blusa larga também de lã um tanto encardida, uma bermuda e chinelos. Nas costas uma mochila surrada semi-vazia.

Parada entre a estação e o interior do vagão ela pergunta "Vai para Del Castilho?", uma região da periferia do Rio, onde há o Shopping Nova América, mas é tida como mais perigosa e violenta. A voz que joga a pergunta sem destino certo para dentro do carro é grave e carrega um estranho sotaque, mas uma ligeira inflexão sugere que é a voz de uma menina embora escondida sob o agasalho largo.

- Aqui todos vão para o mesmo sentido. É a minha resposta...

- Mas vai para Del Castilho - Ela volta a perguntar voltando o olhar interrogativo para mim.

- Vai sim, pode entrar.

Sentada do meu lado ela vasculha suas coisas, suas poucas coisas... Um cartão de telefone, uma agenda com uma foto autografada de Malu Mader.

Sem conseguir decidir se o seu jeito de falar é sotaque ou alguma outra limitação decidimos que é melhor ajudar mais. Levanto e mostro no mapa todo o percurso a percorrer, sempre encontro aquele olhar interrogativo quando a olho... Sentamos novamente... Entram velhinhos e ela cede imediatamente os bancos preferenciais sentando-se ao lado de uma senhora que lhe pergunta o nome:

- Fuco!
- Como é seu nome?
- Fuco!

Ela tem paciência com a senhora que demora a entender este nome tão diferente, mas logo estão conversando e atravessando as barreiras da linguagem. Pelos fragmentos montamos sua história. Triatleta, teatro, África, Ásia, casa da tia em Del Castilho...

A menina de rua era uma viajante com origem, destinos e objetivos desconhecidos... Quem diria!

sábado, maio 15, 2004

Encontros inusitados

As compotas dos céus se abriram para cobrir as ruas empoeiradas de Ipanema de água enquanto eu ainda caminhava longe de casa. O vento frio me obrigava a enterrar a cabeça entre os ombros.
Vinha pela calçada mal iluminada da Visconde de Pirajá quando notei dois vultos sob a marquise, escondidos entre as sombras. Ao passar algo no tom daquelas vozes laçou minha antenção e provocou um arrepio. Parei discretamente mais adiante me escondendo no anonimato urbano como mais um dos espectros noturnos que esperam que um sinal abra.

- Quando era jovem não me importava o destino dos outros! Tinha minha própria glória para conquistar e os escravos que se danassem! Mas na época eu tinha o quê? Nem duzentos anos! Depois a morte me esqueceu, os séculos passaram e acabei me sentindo um idiota, afinal tenho consciência!
- Consciência?

A primeira voz era rude, grave e seca, entre as sombras dava para perceber um rosto grande e marcado pelas rugas do tempo, a figura lembrava um operário na meia idade maltratado pelo tempo. A segunda voz era... Singular! Aquele tipo de voz aguda que faz parecer que tudo que diz é óbvio trivial, sempre com um leve toque de desdém pelos valores infantis dos outros.

- Para você é fácil! O tempo não lhe causa nenhum efeito! Seja na aparência, seja no mundo ao seu redor que sempre é totalmente alucinado! Não me admiraria se você visse peixes voando pelos ares! Mas o chão sob os meus pés mudou da areia do deserto para o barro sujo das velhas trilhas e agora para este concreto cinza.

- Peixes voando? Hummm... Apetitoso!

O dono da segunda voz se vira olhando ao redor procurando os peixes voadores. Move-se com leveza, mas permanece mergulhado em sombras que o escondem totalmente, apenas o leve movimento de uma capa o denuncia.

- Ah! Desde que Inkidu se foi vc ficou amargo e cheio de consciência! Este é o mal de vocês! O mundo não faz sentido, nunca fez, vocês é que insistem em inventar esta loucura! Vamos, a chuva vai nos fazer bem!

Em um movimento gracioso e veloz ele parece catar algo no ar e levar até a boca. Antes de se virar me lança um olhar firme e vejo seus olhos brilharem sob a aba do chapéu com uma pluma espetada, o peixe entre os dentes, um Acará com certeza e depois ele some com o homem pela praça General Osório.

quinta-feira, maio 13, 2004

Dividido

Sou metade judeu, metade árabe... Por parte de pai um sangue, de mãe outro. Justo dois "sangues" que insistem em brigar irracionalmente. Bem, nem tanto os meus pais, mas seus povos.

Então alguém me perguntou: E uma metade de você não briga com a outra?

Na verdade não... Tem religião em que a metade de cima, feita por Deus, briga com a de baixo, feita pelo outro Deus, o do mal. Tem gente pisada pela vida em que o lado direito, racional e realizador, briga com o esquerdo, intuitivo e assustado. Até hoje não sofri tanto isso, até hoje...

Depois de saber que nosso presidente gritou "a Constituição que se foda" enfurecido como uma criança mimada os devaneios têm brigado com o pragmatismo...

Hoje ainda perderam esta briga os devaneios e fica o pragmatismo singular mesmo...

quarta-feira, maio 12, 2004

Embriagados

Algumas vezes olho para o Gato de Botas, quer dizer, leio o que escrevi aqui e me pergunto se não estou exagerando...

Então lembro do governo Bush, da Inglaterra do Toni Blair, leio sobre o nosso presidente embriagado de poder...

A democracia do início do século XXI é mais absurda do que qualquer personagem que eu seja capaz de criar!

Hoje fico em silêncio e deixo os devaneios lisérgicos por conta das notícias na coluna do Ricardo Noblat.

terça-feira, maio 11, 2004

Encontros inusitados

Lá vou eu sentado no ônibus. O corpo todo tremendo, sentindo cada junta do corpo se soltando e reverberando com a enorme estrutura de metal estrepitante que ameaça desmontar a cada curva mais intensa enquanto atravessa em alta velocidade uma das ruas estreitas do humaitá.

Talvez para fugir da tortura da realidade física a mente se desprende e se entrega a reflexões sobre dogmas e inspirações, sobre aceitar cegamente a crença que pode ser o grito de socorro de um espírito cansado ou mais um passo em direção ao amadurecimento desta muitas vezes vascilante espécie humana.

"Cinta elétrica para emagrecer!"

É uma voz estridente, inconfundível! O som vem entre lábios apertados e soa um tanto infantil, é o velho companheiro novamente, o irônico Gato de Botas!

- Como é? Pergunto antes de pensar melhor.

- Não lembra da maravilha da tecnologia? Você ficava em pé diante de uma máquina, passava uma cinta de lona ao redor da sua cintura e a máquina começava a te misturar como se você fosse um bolinho de carne ou um cajuzinho... No final de 10 minutos era garantido que seu cérebro estaria às avessas e o mundo todo lhe pareceria lindo apesar da dor de cabeça!

- Céus Gato! E o que isso tem a ver... Aliás, o que você faz aqui ainda de dia?

- O ônibus, ora! É a cinta elétrica para emagrecer moderna! Ao menos destrói seu cérebro do mesmo jeito!

Digo a ele para me deixar em paz pois estou pensando e não preciso ser importunado por sarcásticas criaturas imaginárias (ele odeia ser chamado de imaginário!)

Calmamente ele se levanta, alheio aos sacolejos do ônibus ele sequer segura nos metais... Abaixa graciosamente aproximando os bigodes coceguentos da minha orelha e mia:

- Alguns dogmas são os finos barbantes que separam vocês de mim... Tem certeza que está pronto para partí-los?

Com facilidade ele se vira e desliza pela porta de saída do ônibus como se fosse o reflexo de alguma luz que passou do lado de fora...

segunda-feira, maio 10, 2004

Novidades no site

Coloquei novidades no site, tem uma viagem em um quadro de Alma Tadema em imagens e um texto sobre a violência em textos. O primeiro parece com o que escrevo em geral neste blog, o segundo é uma reflexão séria pois, infelizmente, mesmo nós das classes mais informadas temos lançado um olhar muito simplista sobre o problema.

sábado, maio 08, 2004

Violência

A realidade passa borrada quando vista pelas janelas dos carros de luxo que cruzam velozmente as vias expressas das grandes cidades. A vida também passa borrada pela janela das TVs onde o mundo passa na velocidade dos valores pagos pelos patrocinadores.
Assistindo os carros passarem e as paredes dos apartamentos de luxo de São Conrado 22% dos 200 mil moradores da Rocinha passam fome e comem lixo. Quarenta e quatro mil pares de olhares fundos que aprendem nas vitrines das locadoras e lojas de eletrodomésticos a lição da nova economia: o mundo é para quem tem, para quem não tem resta apenas a janela fechada do carro parado no sinal, cada um valendo mais de 20 anos de vida digna para quem vive abaixo da linha de pobreza, excluído da sociedade...

sexta-feira, maio 07, 2004

Caverna

Altas paredes de vidro deixam o pavilhão repleto de carros importados bem visível, uma enorme e bem iluminada vitrine que brilha entre as ruas escuras que separam o Rio Sul do chique Outback. Lá dentro Audis reluzem refletindo os farois dos automóveis que passam pela rua do institudo de saúde mental: uma vasta via de alta velocidade.
Sob o palácio de máquinas importadas há um vão escuro, umas plantas maltradadas pela fumaça pesada que sai dos escapamentos, um chão batido de barro onde toda a grama que havia morreu faz muito tempo. Encolhido nesta fenda, abaixo do chão que apóia os caros pneus, o corpo quase nú de um homem, apenas um short marrom e sujo de barro o separa dos primitivos pré-históricos, mas aqueles não conheciam a sedução do conforto e luxúria dos bancos de couro...

quarta-feira, maio 05, 2004

Ilhas urbanas

Sento numa janela esquerda do ônibus e espero ansioso pelo Jardim Botânico; já é noite como sempre e as luzes amareladas dos postes tingem asfalto e calçadas de laranja. Corre ligeiro, corre nervoso, até derruba uma velhinha, joga para um lado estalando e freia bruscamente em cada ponto. Assim são ônibus noturnos: carregam a tensão do dia para dentro da noite escura.
O vento gelado que atravessa a janela me resgata dos pensamentos e chama minha atenção para a escuridão entre os troncos altivos das palmeiras do Jardim Botânico; a escuridão profunda e aparentemente infinita diante de mim certamente não se deixa deter pelas finas grades! Ela mergulha sob a terra estendendo raízes sob o asfalto por onde o ônibus passa...
Ainda agora é como se o solo onde piso não passasse de uma fina casca flutuando sobre as ramificações das florestas onde os índios caminhavam descalços.

terça-feira, maio 04, 2004

Bosque

Vou seguindo a passos lentos pela calçada escura. Em algum lugar acima da copa das árvores a lua quase cheia me acompanha. Um morcego passa sobre a minha cabeça chamando meus olhos para os galhos trançados das árvores.
Elas assistem a noite passar mantendo-se acima de todas as coisas, sob suas folhagens todos os sons desaparecem e apenas o leve roçar das folhas e o sutil guincho dos morcegos perturbam a noite. Sobre seus galhos altos a trepadeira parasita se estende deixando cair longas raizes aéreas e um vento mais frio cruza o ar aparentemente a convite daqueles seres altivos, as árvores.
Durante o dia a luz intensa do sol se derrama sobre elas, mas durante a noite é de baixo que vem a luz esbranquiçada e artificial dos postes mostrando folhas verdes contra a escuridão da noite que domina o espaço entre os troncos enegrecidos.
Do fundo da escuridão além da luz esqualida da iluminação urbana quase podemos ouvir a respiração forte de seres a muito esquecidos que nos fitam do passado alheios ao nosso presente tão distante das supertições e crenças.
Continuo caminhando até deixar o abraço gelado dos vigias ocultos, pouco a pouco meus sentidos são invadidos pelos ruidos de vozes, motores de carros, depois ônibus e finalmente o odor de escapamentos. Diante de mim, do outro lado da rua brilha o letreiro verde iluminado do Bank Boston: estou novamente em Ipanema...

sábado, maio 01, 2004

Nas curvas sensuais do Rio

A música histérica invade o apartamento pela porta da varanda, em algum lugar centenas de corpos jovens se misturam agitando-se sob luzes estroboscópicas. Dance, funk, barulho, não importa! O ar leitoso mergulhado na fumaça dos cigarros, o suor escorrendo pelo rosto, os quadris jogando como ondas no mar revolto. Entre o som ensurdecedor e o pipocar das luzes Arjuna, Hamlet e o velho Quixote se recolhem deixando o caminho livre para personagens sem nome entregues a instintos e desejos.

Universo estático

- 'Fessora! Então quer dizer que a gente sempre foi assim? Deus criou a gente prontinho e não mudamos nem um tasquinho?
- É o que está escrito na palavra de Deus e a palavra de deus é infalível, não é Marquinhos?

Num canto da sala de aula, entre as sombras do armário com livros, o velho e irônico Gato de Botas lambe uma pata enquanto lança um olhar de esguela para a professorinha que não deve ter mais de 25 anos e carrega nos olhos o brilho da fé inabalável.

- Mas 'fessora... Porque Deus só deixou um livro com as verdades dele? Minha irmã diz que as palavras de Deus estão num outro livro ai! Um tal de Tao qualquer coisa; é chinês. Ela fala nisso o tempo todo!

Certas coisas a gente não percebe porque não sonha mais, no entanto lá estava o Gato de Botas ronronando nos ouvidos do Marquinhos suas idéias esquisitas.

A professora olha pacientemente, como olhamos para o jardineiro ignorante que fala nas fadas da mata onde morava quando pequeno, e explica ao Marquinhos sobre as seitas que acreditam em coisas erradas e em como elas podem afasta as pessoas do Deus verdadeiro e do paraíso.

- ... então, dede o início dos tempos, desde o sexto dia, porque no sétimo Deus descansou, que tudo está ai exatamente como sempre esteve! As estrelas paradinhas lá no céu e as pessoas tentando obedecer a Deus e resistir ao demônio aqui na Terra! Entendeu?

O gato, que já se espreguiçava numa das janelas, salta para o pátio da escola, ajeita seu chapéu, lança um sorriso sarcástico e some entre as moitas.