sábado, maio 15, 2004

Encontros inusitados

As compotas dos céus se abriram para cobrir as ruas empoeiradas de Ipanema de água enquanto eu ainda caminhava longe de casa. O vento frio me obrigava a enterrar a cabeça entre os ombros.
Vinha pela calçada mal iluminada da Visconde de Pirajá quando notei dois vultos sob a marquise, escondidos entre as sombras. Ao passar algo no tom daquelas vozes laçou minha antenção e provocou um arrepio. Parei discretamente mais adiante me escondendo no anonimato urbano como mais um dos espectros noturnos que esperam que um sinal abra.

- Quando era jovem não me importava o destino dos outros! Tinha minha própria glória para conquistar e os escravos que se danassem! Mas na época eu tinha o quê? Nem duzentos anos! Depois a morte me esqueceu, os séculos passaram e acabei me sentindo um idiota, afinal tenho consciência!
- Consciência?

A primeira voz era rude, grave e seca, entre as sombras dava para perceber um rosto grande e marcado pelas rugas do tempo, a figura lembrava um operário na meia idade maltratado pelo tempo. A segunda voz era... Singular! Aquele tipo de voz aguda que faz parecer que tudo que diz é óbvio trivial, sempre com um leve toque de desdém pelos valores infantis dos outros.

- Para você é fácil! O tempo não lhe causa nenhum efeito! Seja na aparência, seja no mundo ao seu redor que sempre é totalmente alucinado! Não me admiraria se você visse peixes voando pelos ares! Mas o chão sob os meus pés mudou da areia do deserto para o barro sujo das velhas trilhas e agora para este concreto cinza.

- Peixes voando? Hummm... Apetitoso!

O dono da segunda voz se vira olhando ao redor procurando os peixes voadores. Move-se com leveza, mas permanece mergulhado em sombras que o escondem totalmente, apenas o leve movimento de uma capa o denuncia.

- Ah! Desde que Inkidu se foi vc ficou amargo e cheio de consciência! Este é o mal de vocês! O mundo não faz sentido, nunca fez, vocês é que insistem em inventar esta loucura! Vamos, a chuva vai nos fazer bem!

Em um movimento gracioso e veloz ele parece catar algo no ar e levar até a boca. Antes de se virar me lança um olhar firme e vejo seus olhos brilharem sob a aba do chapéu com uma pluma espetada, o peixe entre os dentes, um Acará com certeza e depois ele some com o homem pela praça General Osório.