sexta-feira, fevereiro 28, 2003

Fragmentos de fantasia III (Vida)

Sua força se esvai sem controle ou aviso, talvez tenha sido algo na expressão da velha senhora, talvez o estranho toque gelado da mão daquela jovem misteriosa, mais tarde ele buscaria explicações sem sucesso. Naquele momento entretanto suas palavras se embolavam e engasgavam no meio da garganta sem conseguir se libertar, tudo que ele foi capaz de murmurar foi uma interjeição muda.
- Hug?
- Pssss! Preste atenção! Tudo ocorre muito rápido agora! É como um breve e sutil suspiro, a qualquer momento...
Uma onda de tonteira confunde seus sentidos, ou a confusão dos seus sentidos provoca uma onda de tonteira. Diante dele duas mulheres de pé ao lado da cama. A jovem segura a mão de uma senhora acariciando-lhe suavemente as costas da mão com seu dedão, a mesma senhora que jaz na cama, morta...
No instante seguinte o ar treme como se uma onda de calor se interpusesse entre ele e as mulheres e ele está só na UTI, ao seu redor crescem os gemidos dos moribundos que imploram pela morte que veio justo para aquela que menos sofria...

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quinta-feira, fevereiro 27, 2003

A casa e suas mil chaves

As rodas do carro fazem a terra seca gemer e murmurar como se duendes ranzinzas resmungassem a visita inesperada. Um portão de madeira escura com traços de um vinho escuro contrasta com as urzes e trepadeiras que cobrem a casa, atrás dele os ramos floridos se estendem pelo estreito corredor por onde os carros devem passar para se esconder nas profundezas da casa.
No quarteirã ao redor outras casas assistem nuas o calor do sol que atravessa suas janelas abertas, mas esta casa ocupa seu próprio espaço, cria seu próprio ritmo para a passagem do tempo que desliza lentamente pelas suas portas conforme percorremos o infinito leque de chaves que abrem porta após porta.

terça-feira, fevereiro 25, 2003

Hiatos

Esta é uma pausa no tom dominante deste blog para um pedido de desculpas, são poucos, mas são fiéis os leitores destes devaneios e passei 9 dias sem escrever. Uma sexta-feira sob os efeitos das viroses de verão, projetos demais no meio das poucas horas do dia e os movimentos no tecido da nossa alma impõe estes hiatos.
Procuro compensar um pouco recapitulando tardiamente os dias perdidos desde 16/2...

domingo, fevereiro 23, 2003

Imaturidade

No verão a lua sobe rubra do chão como uma erupção da grande Mãe. Os ventos quentes do dia, o rigor do sol queimando a pele e o da violência o peito. À noite o contraste com o frescor da brisa suave que as brumas do mar sopram na orla. Atraidos pela mística cor da lua, pela brisa e pela magia da noite artistas, apaixonados, solitários e outras figuras vagam pela estrada de tijolos do Leblon.
Entre as areias e a via expressa três ou quatro moças, dois rapazes, o vilão bem tocado, uma risada desponta do murmurinho sobre a vida, as fofocas, os projetos, os sonhos... Do outro lado, passando a alta velocidade três ou quatro rapazes cruzam a noite berrando palavrões aos que admiram a noite.
A velocidade por que se passa pela vida sempre é um problema...

sábado, fevereiro 22, 2003

Maturidade

- Cara, vai ter uma peça esta semana feita à partir de um texto de Giordano Bruno!
Ela tem 16, mas já vai fazer 17. Sabe a coreografia da dança da eguinha pocotó e da Ragatanga. ao contrário do que gostaria o coro do pessimismo ela não é um gênio, não é excessão e nem mesmo incomum.
Entender o próprio tempo talvez seja um dos mais intrincados desafios intelectuais, principalmente quando a abordagem mais comum foca evento isolado e não o seu impacto no indivíduo e na sociedade.
Para os que não sabem (e ninguém tem obrigação de saber) Giordano Bruno foi um frade do século XVI (queimado por volta de 1608) que defendia uma religião voltada à integração a natureza, o caráter infinito do Universo e a existência de vida fora do nosso planeta.

sexta-feira, fevereiro 21, 2003

Vida invisível

Mitocôndrias, pequenos organismos vivos que se agregaram a grandes organismos com cromossomos, núcleos... Elas são a usina de energia das células, esta grande comunidade de seres que formam uma comunidade que para nós não passa de tijolo básico dos nossos tecidos orgânicos.
O alto verão faz a vida pulular à nossa volta. As viroses de verão estão ai para nos lembrar que ela também se multiplica dentro de nós.

domingo, fevereiro 16, 2003

Fragmentos de fantasia II

Ele olha para o relógio que marca 2:54h da manhã em seus ponteiros prateados. Imagina como os tempos estão mudados. Estes punks entram em qualquer lugar e não respeitam mais nada, seria a moça parente da mulher na cama?
- Hei, moça! Não são permitidas visitas a esta hora, você vai ter que ir.
Ela responde sem se virar, apenas sua cabeça se inclina levemente sobre o ombro esquerdo. A voz que vem dela é doce, jovem e alegre, mas parece chegar a ele mais alta do que deveria no meio do coro de gemidos baixos e outros lamentos não tão baixos.
- É, os tempos estão mesmo mudados... Não é comum que me vejam... Mas eu não vou me demorar muito, mais alguns minutos e poderei levá-la, venha ver, ela está quase pronta! Já que você me vê talvez possa ver isso também!
- Olha, não sei o que você bebe, fuma ou injeta, mas no meu turno não vou permitir bagunça aqui!
Ele vai se aproximando seguro de que uma mocinha como aquela não daria muito problema afinal, negro, forte e com mais de 1,80m, ele sabia que era uma figura intimidadora. Apesar disso no fundo do seu peito ele sentia um vazio, como se o coração batesse sozinho no meio do vácuo.
- Não se preocupe, depois de hoje você não me verá novamente nem tão cedo! - Dizendo isso se volta para ele esticando o braço e oferecendo-lhe a mão. O rosto é belo, surpreedentemente belo, mas pálido como o gelo e os olhos negros como a noite. Entre as sombras da UTI ele tem a impressão que não há branco emoldurando aquelas grandes pupilas negras.
Ele olha para a mulher na cama e percebe que a luz parece mais escura ao redor do seu rosto, é como se uma bruma suave cobrisse seu corpo, mas sua boca sorria levemente, talvez tendo um sonho com uma época feliz e livre da doença que consome seu corpo.
- Vê? Ela já vai...
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sábado, fevereiro 15, 2003

Na ponta da língua

Ah! Que vontade de sacudir aquela mulher! Tem gente que guarda sempre uma grosseria para disparar na cara dos incautos!
Eu vinha quase atrasado para encontrar com uma amiga no cinema, tentando me desenrolar naquele labirinto de escadas rolantes do Botafogo Praia Shopping. Quase esbarro em uma menina com um milkshake na mão e sou obrigado a escutar o discurso da mãe que aumenta o tom de voz conforme me afasto, mas finge falar com a filha.
- Escada rolante não é para ficar andando, viu? É para descer blablabla...
Tenho apenas 15 minuntos para chegar ao metrô, passar pela estação do Flamengo e chegar no Largo do Machado onde a Pat estará me esperando e não paro para desabafar, mas me dou pelo menos ao luxo de fantasiar a resposta que teria para ela!
Imagino-me parando no meio de uma passada agitada, virando lentamente, olhando para a mulher, os olhos transtornados de estupefação e aquela preocupação desesperada que chega a doer.
- Senhora, sou um cirurgião extremamente habilidoso, uma família inteira, avô, esposa grávida e o irmão acabam de sofrer um seríssimo acidente e talvez só eu possa salvá-los! E a senhora preocupada com o milkshake na roupa da sua filhinha? Ah! Rogo que haja um Deus piedoso que perdoe sua alma negra, pois eu não consigo!
Deixando uma lágrima de desesperança escorrer vagarosa pelo rosto, voltaria a me virar e partir correndo com o telefone no ouvido, falando que estou a caminho.
Perdido entre este e outros devaneios mais cruéis, chego ao metrô com 6 minutos para chegar ao cinema, tempo justo, mas suficiente. Entro no vagão e continuo entregue às fantasias. O trem abre as portas na estação... Cardeal Arcoverde? Arghhh!
Ah! Que vontade de sacudir a mulher! ;-)

quinta-feira, fevereiro 13, 2003

O banco, a velha, o túnel

A madrugada segue mais uma vez sedenta pelas luzes da alvorada e os meus caminhos vão convergindo para o fim numa garagem 24h no Catete, um largo espaço vazio, sob o céu aberto, entre as casas centenárias. Um túnel estreito de paredes feridas pelo tempo e pela lhe humidade dá acesso. Do lado esquerdo um banco velho de madeira com as bordas gastas, encardida pelo tempo e pela sujeira serve de cama a uma figura de panos de cores desbotados, uma velha magra, ossos cobertos pela pele curtida e vincada. A boca se abre para o céu exibindo alguns dentes e dela parece vazar seu espírito em direção ao infinito. Não emite ruido, não parece ter cheiro, mais uma criatura fantástica que desaparece durante o dia abafada sob o véu da saturação dos sentidos.

terça-feira, fevereiro 11, 2003

Espectros diurnos

Negra, magra e encarquilhada ela vem descendo as escadas do metrô de Botafogo. A pele flácida e vincada estampa as sete décadas que ela aparenta der assistido. Suas roupas e rugas arrastam os anos que passaram e formam uma atmosfra de estações de trem feitas com madeira seca que range com o peso dos populares. Ela, a mulher, mais parece uma colagem numa paisagem a que não pertence; mas está ali, encurvada, descendo as escadas.
Caminha formando um C invertido, um sinal de conjunto contido depois do tempo que passou carregando sacolas pesadas na mão esquerda e tentando compensar o peso para o outro lado. É um conjunto contido entre as paredes do tempo escasso das conduções demoradas, dos tostões amassados no bolso e da casinha no subúrbio quente do Rio.
É gente mágica que freqüentemente desafia todos os sinais de miséria e revela o mais raros e nobres espírito e sabedoria humildemente pousados sobre o feltro sombrio do corpo cansado e castigado.

sexta-feira, fevereiro 07, 2003

Fragmentos de fantasia I

As luzes frias espalham sua luz ondulante e cansada sobre os leitos da uti. O passar das horas empurrado por gemidos angustiados implorando pela morte. A pálida luz da lua tinge de azul os cantos esquecidos da grande sala e os ruidos da madrugada cortam o silêncio nos breves momentos em que cessam os rumores dos internos.
Surgindo das sombras, materializando-se na fronteira entre as trevas e a fraca luz lunar ela dá dois ou três passos, espreguiça e sorri como se lembrasse de uma boa piada. Os cabelos negros e descabelados, a pele lisa e pálida, o brilho alegre nos grandes olhos que somente os jovens ainda distantes dos vinte e poucos anos possuem e os movimentos leves e dançantes destoam do resto do cenário, mas afinal, ela acaba de brotar das sombras no canto escuro de uma uti e pouca coisa pode ser mais inusitada do que isso.
Quando o enfermeiro entra para seu turno de analgésicos, antibióticos e soros, ela está de pé ao lado da cama de uma mulher que dorme placidamente apesar de cercada pelo coro mórbido da dor e desespero; de pé e sorrindo. Está esticando sua mão sobre a testa da mulher e acariciando seus cabelos finos...

quinta-feira, fevereiro 06, 2003

Vogal é som, consoante é ruído

Bip --- bip --- bip --- biiiiiiiip
Apita o celular, mensagem para você: Vogal é som, consoante é ruído.
Li, não entendi bem, a explicação veio mais tarde, mas a frase permaneceu ecoando pelos túneis da minha mente, som, ruido...
O vento nas folhas é vogal, o baque pesado do tronco derrubado é consoante. A família que mora no mármore imundo das lojas fechadas da praça Mauá é consoante, a esperança é vogal. Olhar para o outro e só ver a si é consoante, chorar com os outros é vogal. Conhecimento só é vogal se vier embrulhado em sabedoria e amarrado com humildade, ambos sempre vogais.
Em tempo, verifique em sua gramática, pois agora me despido ...

terça-feira, fevereiro 04, 2003

Cegos do castelo

Em cavalos poderosos os cavaleiros medievais rasgavam os campos de capim alto enquanto suas sombras se alongam conforme o sol rubro se põe. As nuvens se tingem de vermelho criando estradas de barro e luminosos castelos imaginários.
Sob a visão romântica os pensamentos daqueles heróis em suas frias armaduras escorrem negros como a lama de Mordor. Formam sinistros vultos de traição, sede de poder e a mesquinha ganância. Planejam matar o companheiro de batalha que lhes salvou as vidas somente para lhe tomar mulher e terras.
Seiscentos anos se passam e tudo parece mudado, mas lá está o mesmo cavaleiro atrás de uma mesa, com outras roupas, escondido...

segunda-feira, fevereiro 03, 2003

Nas pequenas coisas...

A reflexão é a lâmina que nos permite vencer o intrincado emaranhado de urzes e trepadeiras que nos cercam por mais que levantemos estes grandes obeliscos de concreto para afastar as lembranças das selvas deixadas para nossos antepassados esquecidos. Ah! Mas trata-se de uma lâmina perigosa, uma cimitarra na verdade! Difícil de manusear e com dois gumes.
Mergulhamos em nossas considerações e nos achamos brilhantes ao escrever algo original e intrincado, mas é na simplicidade que sempre estiveram os maiores segredos e a mais profunda sabedoria...
Simplicidade como os grandes olhos da menina que observa a primeira aula de ballet como estagiária de professora. Na grande sala somente a professora, duas alunas e a jovem estagiária. A espectativa e a tensa compenetração de quem deixa de ser uma mera aprendiz para ser ajudante daquela que tantas vezes ela olhou com admiração incontida. Não é difícil imaginá-la pedindo o estágio. Os olhos buscando as lágrimas que insistem em tentar fugir pela face, o coração batendo oco dentro do peito, a garganta queimando...
Enquanto isso alguém está brandindo sua cimitarra contra moinhos de vento, monstros invencíveis que talvez nem estejam lá realmente.

sábado, fevereiro 01, 2003

Determinação

A toalha de papel coberta de traços, pontos, curvas, rabiscos e figuras geométricas. Debruçados sobre elas dois jovens determinados buscando uma solução para fazer cinco filas de quatro pessoas tendo apenas dez pessoas para isso.
Minutos viram dezenas de minutos e a solução não parece nada mais próxima, a vontade de desistir até ameaça vencer!
- Porra, cara! Isso é impossível! Não são quatro filas?
Ela olha firme para o amigo, a testa franzida, os lábios apertados e a clara indignação e cansaço percorrendo seu rosto.
- Quer a solução?
- Não!!
E volta a mergulhar no problema.