quarta-feira, janeiro 29, 2003

Comensais

Grandes mesas vazias lotam o salão da churrascaria, redondas e vazias. Num dos cantos várias travessas se espalham apertadas entre os pratos. Banana (em extinção), cebola frita, batatas, farofa, pasteis e outros acompanhamentos deixados a esfriar enquanto o papo dos comensais se aquece na chama de sorrisos que são trocados, interjeições de protesto a opniões polêmicas, e piadas até que outros tantos vão chegando de diferentes pontos da cidade como viajantes que se encontram para dividir suas histórias.
Entre eles há tempestades, há o conforto dos olhos amigos que acolhem melhor que os braços da mulher amada, há os bons e os maus dias, contudo sempre está ali entre eles a pureza de espírito que faz das vidas cotidianas grandes épicos.

terça-feira, janeiro 28, 2003

Café pingado e um pão na chapa

Dormir quando o sol já ameaça se levantar no horizonte, acordar quando ele ainda não apagou o sereno da noite sobre as folhas das árvores cobertas de poeira púmblea.
Andar a passos largos, fiapos de suor já deslizando entre as astes do óculos velho, correndo contra o tempo para encontrar sua condução ainda esperando. Atravesar o dia na esperança do por do sol para retornar aos sonhos, ao labor para tirá-los dos domínios de Morpheus. Enfrentar a noite moldando um futuro melhor.
Gentileza moderna
Este suas médias requentadas o nosso executivo moderno procura um pouco de conforto em seus devaneios e casuais passeios de bicicleta pela cidade. Faz escala em um posto para calibrar seus pneus, ajuda a senhora que também passeia com sua bicicleta a calibrar os pneus.
- Obrigado meu filho, quer um Real para um cafezinho?
E ainda por cima este blog passa por uma crise de criatividade...

segunda-feira, janeiro 27, 2003

Labirintos de espelhos urbanos

Quando iniciei este blog, meses atrás, não achei que seria capaz de manter a idéia inicial dos devaneios diários, afinal, é devaneio a rodo! Ah! Mas basta um olhar mais atento na nossa cidade para descobrir um universo infinito de devaneios!
Como sempre a noite já não é mais jovem. A chuva enfeitou a cidade de reflexos, transbordou a Rodrigo de Freitas e colocou poças lamacentas no caminho dos pneus das bicicletas que se vêem obrigadas a cruzar as ruas escuras da madrugada bem lentamente para não enlamear seus pilotos.
A água que cai do céu é até bem vinda, beijos suaves e gelados da mãe Terra, mas a que respinga das ruas desta Morpork latina realmente não desperta o mesmo conforto!
Quanto mais devagar o mundo passa maior se torna a vida, pena que nossos carros sejam verdadeiros cometas que passam e ninguém vê, passam e nada vêem!
Ao largo vão desfilando os cenários da noite. A grande garça e seu tae-shi-shuan nas margens alagadas da Lagoa; mais na frente o camburão segue na contramão enquanto metralhadoras são apontadas para o velhinho ao volante do carro novo; cruzando o Flamengo sobre um viaduto os traços humanos invadem as narinas, ainda mais adiante o caminão de lixo carrega mais cheiros...
A cidade segue impessoal, nos apartamentos as paredes se tingem das mesmas cores enquanto os que permanecem acordados assistem ao mesmo canal, mas entre todas estas coisas sempre há uma luz, a que brilha nos olhos de uma criança que chora as lágrimas dos guerreiros que desafiam seus limites e transformam o mundo.

domingo, janeiro 26, 2003

Tlaloc

Lá fora o mundo desaba em água, ao longe escuto forte a batida da bateria de carnaval e os gritos festivos que vez ou outra se elevam acima do ronco da chuva na copa das árvores. O deus da chuva e seus seguidores parecem ter despertado do seu sono! Resta esperar que voltem a dormir antes das chuvas de março!

Deuses Brasileiros

Escatologicamente e magistralmente Neil Gaiman satiriza a cultura popular estadunidense em seu livro Deuses Americanos, mas se tivesse passado mais tempo no Brasil se encantaria com nossos deuses que, como no seu romance, caminham entre nós como humanos, saltando de um mendigo a uma criança e depois a um velho que joga damas com o caximbo tombado no lado da boca.
Na esquina da rua do Catete com outra sem nome em minha memória que se recusa a decorar nomes de ruas, se estende enorme o esqueleto da Renascença. Loja que já foi até cantada pelos mestres da nossa música e hoje é o eco vazio do abandono, região de espectros que poderiam espiar lá do fundo escuro nossa passagem pela calçada aproveitando-se do véu com que escondemos tudo que é feio, do morador da rua ao prédio em ruinas...
Vira e mexe os espectros escapam, vagam ao nosso lado pela calçada, assim foi hoje!
A pele marrom, escura como o barro fértil, barbas e cabelos negros, curtos, uma única perna fina usada para saltar, o bermudão largo, sem camisa e uma árvore por desafio! Lá vou eu em busca de um novo lar para mim e deixo este saci moderno escalando sua árvore onde se empoleira como um pombo e se entretém a nos observar passando em nossas vidas tão importantes...

sábado, janeiro 25, 2003

Fotos de encontros

Tem um jeito de rir que só quem é jovem sabe! São os dentes expostos sem mendo, os lábios sem tensão que se estendem generosos, a lingua suavemente pousada sob o colchão da boca, os olhos faiscando e a onde de alegria fazendo o corpo inteiro oscilar como um junco ao vento!
A pequena varanda do Pizza Park da Cobal do Humaitá com as suas mesas sobre o chão de ripas de madeira escurecida mal comporta as mesas juntas onde se espremem os risos do grupo que espera a chuva enquanto divide as histórias diárias como se divide o pão da comunhão. Ora um se encolhe sobre o celular, ora outros dois se isolam por alguns minutos em volta da tela de um PDA... Jogo de paciência, quem diria, se torna jogo de equipe!
A chuva não tarda a chegar, ruidosa como a onda do mar em ressaca, transformando a pequena varanda de tábuas escuras em cais de atracação das mesas que firmam suas âncoras.
- Moço, me arranja um saco plástico para minha bolsa?
- Vamos gente! O carro já chegou, lá fora, ó! - Já na ponta dos pés cercada de água, sapatos nas mãos e o mesmo sorriso no rosto!
- Não cabe todo mundo!
- Esquenta não, vou na chuva, é só água!
Os esplashes e esplofes assistem o grupo em sua corrida separando-se até mais ver!

sexta-feira, janeiro 24, 2003

Torrente

"Cara! Tá tudo bem com você? Tá em casa? Ih!? Dormindo! Ah! Duas e meia! Foi mal, acabo de chegar na casa de uma amiga, você vive na rua de madrugada e fiquei preocupada! Putz! Água pelo joelho, cara! Baratas e coisas que nem quero lembrar... O cara avisando para não ir por ali que dava choque! O carro a gente jogou em cima da ciclovia! Deixa! Tudo bem ai, né? Tu não imagina! Passei alcool nas pernas! Argh! Cheia de nojo! Vai dormir! Te ligo amanhã!"

quarta-feira, janeiro 22, 2003

Cidadela

Sem cair no maniqueismo dos modernos filmes de ação temos que reconhecer que em tudo há luz e sombras...
Há obra mais leve e luminosa que o Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry? O que nem todos sabemos é que do mesmo punho nos veio a Cidadela... É impossível não lembrar dela ao andar pelas ruas do Rio pela madrugada...
O Largo do Machado mergulha nas sombras da madrugada enquanto a lua já caminha alta pelo céu projetando polígonos de luz etéreos ao passar entre as folha das árvores. Os sons noturnos são abafados pelas imagens sombrias de pessoas que se estendem no chão, coladas às portas das lojas em busca de sono. Sob os farrapos das calças vê-se as chagas cultivadas nas pernas, o sangue seco emoldurando o quadro pusilânime. Chagas adubadas com a sujeira das nossas cidadelas, troféus disputados pelos mendigos da cidade que durante o dia esticam sua escudela vendendo-nos sua podre condição enquanto seguimos a passos firmes imaginando antolhos que nos salvem deste cenário...

terça-feira, janeiro 21, 2003

Idiosincrasias

Os olhos que assistem constroem a realidade tanto quanto as mãos que trabalham. Onde um olhar enxerga luz um outro vê danação!
A cidade tem diversos ritmos, divididos pelas horas, pelas tribos, pela geografia dos bairros. Inesperadamente a cidade do interior invade a cordilheira das construções modernas com suas fachadas cinza cimento e das velhas casas centenárias, muitas vezes apenas fachadas ocas.
O sol deixou o chão ainda quente das ruas do Catete, sete horas ou mais se passaram e o ar continua quente embora a manhã já esteja próxima. A cada esquina uma decrépita combi com a pintura marcada e rachada. A lateral aberta serve de balcão para a venda de cerveja e sanduiches, cadeirinhas e um toldo fecham o cenário que se enche de colorido ao som samba-pagode-canção brega que flui animado do pequeno som portátil.
Imagens que se misturam a tantos interiores deste Brasil, a Paranaguá, aos confins de Recife e de Natal onde estes mesmos olhos já estiveram vendo o povo tão parecido deste enorme país!

segunda-feira, janeiro 20, 2003

Novo mundo, velho mundo

Salto do ônibus quase em frente ao neón verde do hotel Novo Mundo na praia do Flamengo. Não sei como, não sei de onde, não sei porque, nem mesmo sei bem o que siginifica! Mas me vem aos ouvidos da imaginação esta musiquinha, esta quadrinha, fragmento de algo que talvez venha a ser um dia e resolvi compartilhar:
Novo Mundo, Velho Mundo
Mata o velho mundo novo mundo
Novo pano, velho sono, novo mundo
Mato velho novo mundo nova selva

sábado, janeiro 18, 2003

Point do Surf

Graças ao horário de verão o sol continua castigando o solo e nossas cabeças embora os relógios apontem para as 14h, alias indicam já que agora são digitais e não apontam mais nada. Com fome recorremos à lanchonete do posto (que não aparece aqui pois não pagou pelo espaço!) e descobrimos o que Dante queria dizer quanto falou do calor que emanava do inferno!
Lá dentro as máquinas que fritam, aquecem, grelham e batem produzem um calor e um vento gorduroso que parece nos abraçar quando entramos. Depois do choque inicial nos acostumamos, a gente se acostuma a qualquer coisa hoje em dia, talvez tenhamos sido sempre assim, afinal os europeus não se acostumaram aos ratos que todos acham que causaram a peste negra? Quem diria que eram os piolhos das pessoas, e não dos ratos, os maiores responsáveis... Pois é! Nossa espécie se acostuma... Ah! Estes devaneios que não me deixam! Voltemos para a lanchonete!
Em frente o balcão vai atendendo bem lentamente as filas curtas, mas demoradas. Do lado direito umas cadeiras, gente andando descalça com os pés enegrecidos e as unhas sujas, crianças espalham seus brinquedos pelo chão, duas máquinas de flipper esperam algum adolescente e sua fichinha, a criança de colo que chora, os cabelos endurecidos de sol e sal marinho do casal, ele barrigudo, ela com o olhar cansado de dona de casa.
Em algum lugar lá atrás existe uma salinha do point do surf indicada por uma setinha, não fui ver. O cenário ali mesmo já era fascinante!
Saimos carregados de sanduiches e bebidas para os outros que nos esperam cheios de fome. Do lado de fora, livres do calor profundo o dia parece até fresco, a brisa da praia sopra suave, os carros importados desfilam pela avenida litorânea da meca consumista, a Beverly Hills brasileira, refúgio suposto da nossa alta burguesia.
Quem diria que esta é a cara do povo da Barra da Tijuca?

sexta-feira, janeiro 17, 2003

Manco

Quebrando um pouco nosso ritmo normal... Estou em troca de computadores, sentindo-me muito esquisito usando uma máquina com Windows para fazer meus contatos e manter as páginas. Meu livro de endereços está todo em backup e não tenho como entrar em contato com muitas pessoas queridas, ou seja, todos que lêem este blog e muitas outras! Queria pedir que vcs me enviassem um email para que eu possa cadastrá-lo aqui no Windows enquanto não recupero minha instalação Linux!

Floresta de metais

As longas astes de metal se espalham pela sala sobre o solo claro de madeira crua, ao redor os vidros multiplicam reflexos. Paradoxalmente os metais, vidros e reflexos parecem diáfanos, sutis. Vagando entre a floresta mergulhando em sua leitura um elfo errante, os cachos dourados, os olhos claros e distantes, um espectro entre os véus deste bosque moderno. No ar algum tipo de magia parece cercar a todos, uma espectativa e uma atmosfera pura onde a fumaça e o medo das cidades modernas são apenas imagens fantásticas de alguma fantasia literária de um Tolkien sombrio...

quinta-feira, janeiro 16, 2003

Estações

O verão castiga as folhas das árvores, o solo dos meus vazos na varanda racha sob o calor ressecante, mas toda a natureza ainda explode em vida! São as cigarras que cantam ainda longe da sua fúria explosiva que virá no fim do verão, depois virá o outono e tudo se recolhe só restando ao jardineiro observar como as sementes de afundam na terra esperando a passagem do inverno para voltar a germinar.
Assim somos nós... Explodimos, germinamos, definhamos e nos recolhemos para depois fazer tudo outra vez.
Pobres filhos de Adão, expulsos do paraiso por esta mania de prestar mais atenção aos próprios devaneios do que à realidade que salta aos olhos por toda a volta! Acabamos misturando tudo! Tentando explodir quando deveriamos nos recolher...

quarta-feira, janeiro 15, 2003

Véus

Ultimamente ando com um par de fones de ouvido mergulhado no som do Poesia de Gaia por motivos que logo todos saberão! Ah! Desculpe pelo mistério, mas adoro um labirinto, um segredo escondido atrás de um véu de mistério! Pois então, véus!
Com os fones no ouvido o mundo passa estranho à minha volta, um filme mudo cheio de gestos misteriosos já que os sons que lhes dão sentido estão filtrados pelo som da música que ainda assim se entremeia nas cenas cotidianas como se fossem feitas para aquela trilha sonora!

terça-feira, janeiro 14, 2003

Nos tornamos o que odiamos?

É lá na Cinelândia, antes era um cinema, agora é uma igreja, destas Universais do Reino de Deus. Coisa que me entristece e, confesso, dá um preconceito danado! Só que a gente precisa resistir de todo jeito a este sentimento feio, né? Então procuro escrever imparcialmente enquanto meto uns tapas no meu preconceito para que ele não dê as caras e fique comportadinho do lado de cá! Vamos ver se consigo apenas fazer uma foto do fato! ;-)
A porta se mantém aberta como uma caverna convidando nossos olhos a espiar o que ocorre ali, lá na parede do fundo uma foto enorme de um lago com os galhos de uma grande oliveira em primeiro plano onde deveria haver uma cruz. Impelido pela curiosidade vou entrando na caverna e lá estão as cadeiras vazias do velho cinema, as paredes brancas e ainda os velhos detalhes nas sacadas bem conservados pelos moradores atuais.
Lá na frente um tipo de palco, uma fogueira feita de luz, papel celofane, ventiladores escondidos e tijolos. Um homem mantém uma das suas mãos na testa de uma jovem que deixa as mãos pousadas na cintura formando asinhas de bule de chá com os braços, uma mulher vestindo um tipo de uniforme (blusa branca e saia longa e azul marinho) o auxilia apoiando a jovem. Na primeira fileira um rapaz observa, namorado, irmão?
A cena nos remete aos fogos medievais quando gente que logo seria queimada se reunia ao redor de fogueias no meio de mato, mas é realmente inusitado ter esta sensação entre gente que hostiliza tanto estes antigos ritos!
Ao redor de tudo isso, em quatro cadeiras bem distantes umas das outras, se sentam quatro pessoas. Uma, as mãos com ataduras esticadas em direção ao exorcismo que se desenrola, bem atrás um homem parece rezar, num ponto à esquerda outro dorme e finalmente, bem no ponto central para onde convergem todas as imagens e os gritos de ira do exorcizador, um último homem lê calmamente seu jornal...

segunda-feira, janeiro 13, 2003

Piabas

O destino é a Barra de Fora como vem sendo chamada a extensão da Barra da Tijuca criada pela especulação imobiliária e o desejo infantil que alguns tem de falar que moram ou trabalham na Barra com as bochechas infladas como se um ovo quente as queimasse. O destino é esse, mas para ir do Catete a estes confins a primeia carruagem é um ônibus cujo letreiro anuncia "Piabas". Onde fica este lugar realmente não sei, mas a condução cruza toda a Barra da Tijuca deixando-me onde possa encontrar outro veículo que avançe mais uns 6Km entre terrenos baldios, matagais e manguezais em direção a Curicica ou o Projac que de tão grande e freqüentado ganha ares de bairro nas plaquinhas das combis coletivas.
Ainda lá no tal ônibus para Piabas, sentados no banco à direita, ela na janela, ele no corredor. Um casal, já além da meia idade. Aparência rude, a camisa dele de tecido fino e ainda mais afinado pelo tempo de uso, quase puída e cheia de encardidos. Ela de cabelos bem curtos, parece um menino apesar das rugas que margeiam os olhos vivazes.
E lá está o homem gordo, a barba curta e enrolada cobrindo o rosto, negra e irregular sobre a pele curtida pelo sol. A cabeça jogada sobre o ombro da mulher. As costas curvadas em arco aconchegando-se naquele colo como a criança que tem medo do sono que a domina e logo a arrastará para o esquecimento do sono sem sonhos. Então, surpreso, testemunho o paradoxo da trunculência...
Aquela imagem frágil, mas culina ainda que infantil sacode rudemente a parceira, companheira de anos acostumada ao carinho rude do parceiro, ajeitando seu ombro, torcendo sua cabeça com violência para moldá-la às necessidades da sua carência, para fazer dela um útero onde se esconder do cansaço diário que já se repete por décadas...
Atrás deles a chuva cai lentamente, as poças d'água refletem o céu cinzento e os grandes terrenos baldios com seus altos capins se estendem até o horizonte onde se levantam as serras distantes e tudo o mais parece tão pequeno.

domingo, janeiro 12, 2003

Entrelinhas

Há dias que não podem passar em branco, em que o olhar penetrante da amiga nos dá suporte e deixa marcada sua imagem na memória por dias, talvez por vidas! São dias em que o azul dos olhos do infante nos iluminam de esperança e fé em nossa gente, afinal ainda nasce a pureza e grandes espíritos com nossas crianças. Mas são imagens que não podem ser traduzidas em palavras. Deixo então apenas as entrelinhas, o espaço para você colocar o olhar da sua amiga te dando apoio quando você precisou, da sua criança mágica olhando nos seus olhos quando vc chega apra visitá-la.
É nestas coisas que está a vida, não deixe que te iludam! Todo o resto é arabesco tosco e sem maior importância a não ser quando serve de moldura para estes olhares!

sábado, janeiro 11, 2003

Terra Média e a colcha de retalhos

É uma pena que o cotidiano perca sua dimensão mágica pela força do costume que torna trivial tudo que vemos todo dia. A família que vive sob a marquise da loja de tecidos e a esquina escura do bairro envelhecido que surge repentinamente diante dos olhos povoada por meia centena de pessoas embaladas ao som de um samba ao lado de uma combi velha que vende cachorros quentes.
Nas manchetes dos jornais, nas novelas e na desesperança popular vemos as linhas de um povo que já não é tão hospitaleiro, de gente que vive a vida dos interesses e da malícia. Felizmente existe a jornada de Frodo e Sam, mas será que amizade assim só no meio de magos e elfos numa terra fantástica?
Assim como a matemática descreve os fenômenos físicos a mitologia é a linguagem para descrever os fenômenos da alma, a Terra Média existe, o anel foi forjado e temos que carregá-lo. Cabe-nos decidir que personagens seremos. O Gollum que foi dominado pelo mal e não é mais capaz de ver e estrar entre o bem? Frodo que, mesmo cercado pela sombra luta pela esperança e fé?
Enquanto a Terra Média é coberta pelas sombras da guerra o condado persiste em sua ingenuidade, alheio ao mal.
Volto a olhar ao redor e vejo gente alegre reunida, a comilança dos hobbits, as piadas ingênuas, os amigos deitados lado-a-lado envolvidos nos planos de trabalho, os carinhos inocentes, uns jogam, outros conversam.
Não quero, mas afasto meus olhos, procuro ver mais decima e este mundo mágico se torna um retalho colorido e ainda novo na imensa colcha de retalhos que é nosso mundo de milhões. Olho e me pergunto quantos outros retalhos como este posso ver? O que aconteceu com aqueles que agora estão velhos, encardisos e cinza? Agarro-me novamente a este pequeno retalho, a Rivendel real, o condado acolhedor e rogo que a luz dos vinte e poucos anos não se apague nunca destes olhos que me fitam!

sexta-feira, janeiro 10, 2003

Enquanto eles dormem

Aos pés do Redentor, o salvador de pedra que assiste a noite carioca do alto, o rapaz desce correndo a ladeira de pedras antigas que assistiram a passagem de tantas carruagens e hoje testemunham os passos dos bêbados voltando de suas noitadas. Seus pés quase se perdem entre as fendas, cata um cavaco, acha novamente o equilíbrio e continua sua descida apressada. Logo abaixo o Cosme Velho.
As casas escuras testemunham mudas a sua corrida. Umas abandonadas aos fantasmas, outras dormem e sequer a luz azulada da TV dá sinal de vida; em outras a luz se espalha pela rua esticando uma sombra fina e comprida do rapaz que corre enquanto lá dentro, alheios ao que se passa, outros fazem música.
E os passos seguem ladeira abaixo enquanto a chuva não vem, vão se perdendo na escuridão e no esquecimento enquanto seguem para seu destino desconhecido..

quinta-feira, janeiro 09, 2003

Castelos de luz

Enquadradas no amarelo da parede que se abre para a varanda... Árvores, palmeiras, cigarras, as nuvens vermelhas do crepúsculo, edificações silenciosas pintadas de magenta.
Altas e densas as nuvens rubras cobrem os céus como um firme barro vermelho onde castelos se erquem contra o fundo azulado desafiando a gravidade, despertando do fundo da nossa memória atávica mitos que achávamos esquecidos! Um mundo sublime onde a luz sempre brilha, as estações são todas de vida e arte, os antigos hiperbóreos da Grécia, os Valar de Tolkien nos observam curiosos lá do meio daquelas nuvens e seus castelos onde dragões vagam como aqui vagam as andorinhas!

sexta-feira, janeiro 03, 2003

Anacronismos

Os reflexos da enorme árvore de natal correm pelas águas da lagoa enquanto lá nas nuvens pesadas que planejam alguma tempestade de verão correm as luzes dos holofotes. Os arbustos, vejetação de mangue que deve ter cercado toda a lagoa no início, escondem a margem de onde vem o barulho de um grande peixe na água. Então... vozes. O tom confidente, grave e murmurado de quem conversa ao lado de outros que dormem. Novamente o ruído da água, risos...
Lá estão, vindo contentes com o jantar garantido, os peixes presos em suas redes, os pés molhados deixando o rastro de pegadas na areia. Por um momento as luzes da cidade parecem esquecidas e opacas, o som dos carros apenas o rumor distante do mar e a civilização um processo ainda por vir! Imagino que aqueles índios sentarão protegidos pela ribanceira e tostarão seu peixe numa fogueira de gravetos enquanto naquela distante civilização de onde vim alguém estará em um restaurante caro...

quinta-feira, janeiro 02, 2003

As feras da cidade

Do escuridão do oceano Atlântico Ulmo olha para a costa iluminada, os prédios orgulhosos, os carros ligeiros com suas buzinas distantes e nos bares os pequenos e ruidosos humanos.
Ipanema.
A longa mesa, a dúzia de jovens, gargalhadas, piados, urros e grunidos se embolam na festividade do encontro. As histórias contadas com orgulho, a admiração dos companheiros, os gracejos para seduzir, as chacotas para mostar superioridade.
Naquele mesmo solo, apenas um instante para as imemoriais ondas do mar... Não havia a mesa, mas uma fogueira, o medo que a festividade espantava não era inconsciente, era das feras escondidas nas sombras das árvores, mas para Ulmo talvez tenha sido apenas a luz que se acendeu entre um dia e outro que diferencia estes dois mundos...

quarta-feira, janeiro 01, 2003

A cidade das feras

Apenas as finas paredes de madeira mantém os ruídos selvagens do lado de fora, a mata ameaçadora e as feras. Conforme o sono o domina os sonhos o arrastam, fendas se abrem nos nós da madeira e toda a casa implode sendo invadida pela onda de folhas verde-escuro e seu espírito se afoga nas raizes sob o chão debaixo da sua rede mergulhando nos recônditos das memórias dos seus ancestrais que se esgueiravam pelas sobras sob o teto das folhas para caçar...
A imagem salta das entrelinhas de Isabel Allende, levanto os olhos... lá está o shopping, milhaes de luzes, as filas para os cinemas, o ar saturado da gordura das cozinhas à volta. As paredes não são de madeira; vidros, concreto e alumínio tentam afastar os dedos esguios da floresta mas lá está ela espionando com seu ollhar profundo da baia mergulhada nas sombras