terça-feira, abril 29, 2003

Rotas

Cobal do Humaitá, Rota 66, cadeiras de madeira, um DVD dos Titãs, uma caipirinha sobre a mesa e ela sentada de boné esperando, sozinha.
Um ruido a desperta dos pensamentos que se escondem sob a aba do boné que lhe cobre os olhos enquanto se vira para receber os amigos. Beijos, abraços, um sorriso capaz de transformar o pequeno bar em um pub aconchegante.
Histórias dos maus atendimentos nos bares do Rio, a compensação da paisagem e do calor dos amigos que abrem suas portas uns para os outros.
- Cara, não acredito que você tirou os Titãs para colocar isso ai! Eu tenho um DVD do Queen aqui, põe ai!
Alguns segundos depois ele volta...
- Queen é meio pesado para esta hora, a patroa mandou deixar aquele ali mesmo.
E lá vai ele de volta para seu papo, por isso as mesas vazias! A gerente não tem DVD em casa!
Risos, mais histórias, a festa quando finalmente surge o Queen nos monitores e a noite continua seu curso contornando o oasis delimitado pelos amigos que se reunem.

segunda-feira, abril 28, 2003

As Horas

Manhã, tarde e noite; Talo, Auxo e Carpo, as deusas gregas do ciclo da vida, que fazem brotar, crescer e frutificar. Atravessando as estações aprofundam as raizes nas secas, fortalecem os caules nos ventos e frutificam nas chuvas de primavera. Também são disciplina, justiça e e paz, Eunômia, Dique e Irene regendo as estações da humanidade.
Pois as horas passam enquanto numa sala pequena se aconchegam dois amigos. Apenas o tom suave das suas vozes escapam pelos corredores da casa, vazios e frios frente ao calor que os une, não em harmonia, mas no mesmo caos que rege a vida.
Hora se questionam, hora viram o olhar para o chão para refletir, hora se apoiam...
- Cara, eu queria muito poder confiar em você, porque gosto muito de você, mas...
E ainda assim amigos, aprofundando raizes na seca.

quinta-feira, abril 24, 2003

Pare

Antes de entrar na rodovia do federal, limites de 110 Km/h, letras brancas no asfalto aconselham "pare", a rotação das rodas finge cair um bocado, mas parar não é uma opção, estamos sempre correndo para uma via de alta velocidade.
Este blog também não pretende parar, mas as entradas vão passando e não é sábio seguir a 110 Km/h sem saber para onde.
Este blog começou como um exercício de imaginação, um bocado de experimentação de estilos e para compartilhar reflexões com os amigos, assim continua, algumas vezes tropeçando outras até nem tanto, mas... Ele tem um tom pessoal demais, já foi diagnosticado como interessante para quem me conhece, fiquei um pouco chateado, mas foi um bom diagnóstico. A placa anuncia: "Bifurcação a 300m".

quarta-feira, abril 23, 2003

Cápsula do Tempo

No pós-guerra todos temiam o fim de tudo que a humanidade pode representar. A Voyager foi lançada ao infinito com uma placa de ouro com finos traços descrevendo um pouco do que somos. Em alguns lugares foram enterrados grandes cilindros herméticos contendo cartas, videos e livros entre outras preciosidades. Passou o tempo e nos esquecemos outra vez que quase tudo termina, ninguém mais lembra dos tais cilindros e a Voyager provavelmente jamais será encontrada.
Enquanto isso o velhinho de pernas tortas, passos inseguros, longas rugas e olhos vivazes atravessa a rua em obras. Entre a rede plástica laranja, os carros impacientes e os montes de terra aquele pequeno fragmento do passado segue desapercebido. A calça de tecido fino, presa por um cinto preto e ainda assim ameaçando cair. A cada passo aqueles pés parecem relembrar a grande avenida quando paralelepípedos a cobriam, os pedestres andavam de chapéu e as mulheres se cobriam de vestidos quentes apesar do calor do Rio.

terça-feira, abril 22, 2003

Fim dos dias

No outono a vida se recolhe para a terra, preparando-se para os dias inférteis do inverno, mas o sol ainda incide intenso sobre os tapumes negros ao lado da Fundação Getúlio Vargas, pessoas caminham pela calçada descoberta levantando um pouco de poeira da terra seca e os ônibus rugem no limite do ruído aceitável.
Colado lá no tapume o aviso de dias atrás: Compro sua Alma. Não há como não deter os passos alguns segundos, olhar ao redor e procurar a tal fumaça de enxofre, olhar pelo buraco do tapume negro em busca de uma resposta. Nada...
Alguns metros adiante o mesmo aviso outra vez. Não... Mesmo papel, mesma ausência de contato, mesmas letras, anúncio diferente!
"Vendo Minha Pele"
Mesmo capaz de imaginar que tipo de pele o comprador de almas tem prefiro deixar para sua imaginação a resposta para este enigma!

segunda-feira, abril 21, 2003

Comércio

"Compro sua Alma"
Papel A4 branco, fonte System bold ocupando o papel inteiro. O anúncio se espalha pelos postes do Aterro e praia de Botafogo. Desafiam o bom senso, sem endereço, telefone, destinatário ou remetente, apenas o aviso lacônico de que alguém na região compra almas, a sua especificamente...
A curiosidade grita ansiosa querendo parar sob um dos avisos e ver se um pipocar no ar acompanhado do cheiro de enxofre e uma fumaça amarelada que se dissipa levada por um vento revela um estranho homem de terno preto, maleta na mão esquerda e óculos escuros.

domingo, abril 20, 2003

Labirintos

Friburgo logo acordará, duas e meia, três e meia de madrugada e o carro ainda vaga perdido sobre os paralelepípedos de ruelas secundárias e escuras. Casas silenciosas de dois andares assistem a passagem tímida e insegura do veículo, aqui ou ali um moderno condomínio de casas se faz notar pelas luzes fortes e guaritas guarnecidas com seguranças sonolentos. A cada 100 metros três novos cruzamentos embolam o labirinto de ruas. O alvorecer se aproxima, mas quem se importa?
Dentro do carro de vidros abertos a conversa animada dos três amigos invoca o calor da primavera em contraste com o frio vento de outono que insiste em se insinuar. Curiosamente a conversa vaga por labirintos de ruelas estreitas e noturnas da vida onde tudo dorme, mas atrás das janelas luzes pálidas denunciam ânimas ansiosas pelo calor de uma pousada povoada de amigos e o som do violão.

sábado, abril 19, 2003

Amazona

A estrada vasta se estente como uma rodovia de primeiro mundo, as árvores verdejam emoldurando o rio de carros, fazendas surgem casualmente, cabras, carroças e gente calejada do campo passam borradas ao lado do carro veloz.
O trote suave do cavalo de raça seguindo o acostamento sob a condução cuidadosa da amazona. Cabelos loiros brilham sob o boné bege, a blusa azul e o jeans novos poderiam estar em qualquer shopping center das grandes capitais, mas estão ali sobre o corcel.

quinta-feira, abril 17, 2003

Inverno

Toca o telefone, um velho amigo... Telefones móveis: a falência da privacidade! Enquanto ela caminha pela rua todos escutam sua conversa animada.
- Oi! Cara, que saudades!
- É, agora você mora pertinho da minha faculdade, mas ando tão enrolada! Putz, desde aquele dia que nos desencontramos tenho a maior vontade de passar aí!
- Ah! Não fala assim não que não sou só eu que não ligo! Faz um tempão que você não me liga também!
- Aham, aham... Olha, estou quase chegando em casa, te ligo no fixo, você vai gastar uma grana com celular!
Então vem o turbilhão de estímulos, valores, alguma acomodação e o telefonema é esquecido, dias mais tarde um email, talvez uma mensagem para o celular, pedirá desculpas, explicará como a rotina anda corrida ou simplesmente sugerirá:
"Vamos ao cinema qualquer dia destes?"

quarta-feira, abril 16, 2003

Castelinho do Flamengo

O passado se estica sobre o presente no testemunho mudo das antigas construções. Passamos por elas muitas vezes sem perceber, sem dedicar alguns segundos de reflexão para comparar suas linhas imprevisíveis com os ângulos retos da vida moderna.
Acredito ser um erro viver no passado elogiando sua opulência e inocência, pois elas são as sementes de tudo o que temos de bom e ruim hoje, mas certamente esquecemos de preservar alguma coisa boa do passado, sempre esquecemos.
A vida se torna cada vez mais rápida, cada vez menos prosaica e mais fria conforme amadurecemos. A magia e o calor da infância em geral se perdem quando mergulhamos nas malhas do trabalho cotidiano e das responsabilidades. O mesmo parece vir acontecendo com nossa civilização... Ela está saido da adolescência e já demostra como sente falta dos anos dourados.
As redes plásticas de proteção cercam os andaimes que vestem o Castelinho do Flamengo com uma nova pele, em breve ele poderá brilhar mais uma vez como uma boa memória do passado. Em seu interior já se instalam as vozes dissonantes dos tempos modernos, uma exposição de vídeo que faz o contraste entre o futuro e o passado...

terça-feira, abril 15, 2003

Estações da amizade

O carro vai buscando um caminho entre o tumultuado trânsito do Rio enquanto lá dentro outros caminhos são traçados, a densidade da conversa abafa os ruidos externos. As vozes suaves e cúmplices se mesclam, os olhares se cruzam casualmente mas mergulham fundo no outro. É a estação do outono, quando recolhemos as forças para o inverno. Assim como Gaia todos nós cruzamos nossas estações, não sempre em ordem, mas há o verão intenso em que mergulhamos na vida sem medir esforços, sem temer conseqüências; há o inverno quando precisamos nos afastar, ficar num canto observando ou olhamos no espelho e buscamos nossa própria essência; a nossa primavera é quando tudo é colheita e prazer, todos gostaríamos que esta fosse a única estação, mas ela é fruto e não semente! Sem as outras não há primavera! E finalmente temos o outono...

sábado, abril 12, 2003

Fragmentos de fantasia III

O meio-dia entra pela janela onde Jorge não teve dinheiro para colocar cortinas e o desperta cedo demais, depois de apenas umas cinco horas de sono.
Muitas vezes uma noite de sono é um intervalo tão extenso quando uma morte e uma reencarnação, tudo que aconteceu no dia anterior repentinamente se converte em memórias distantes que bem poderiam ser de outras pessoas, coisas que nos contaram e, por confusão da memória, nos lembramos como se tivessem ocorrido conosco. Ainda assim Jorge despertou assombrado por um aperto no coração, uma sensação esquisita e perturbadora, como se o chão de tacos envelhecidos onde ele pisava pudesse ruir a qualquer momento.
O que mais incomodava não era a alucinação que ele teve no dia anterior. O sono faz coisas muito estranhas e ultimamente ele dorme muito pouco dividindo-se entre três trabalhos, dois como enfermeiro em hospitais e mais um bico como digitador de monografias para os formandos em medicina. O que mais o perturbava era aquele olhar imaginário, a tranqüilidade e a segurança daquela menina imaginária diante da morte!
Era injusto que justamente aquela velha senhora, a pessoa que menos sofria naquela UTI fosse agraciada com o descanso da morte. Ele a tinha visto chegar na UTI, alegre e cheia de esperança apesar do estado da sua saúde e o seu sorriso se confundia em sua memória com a expressão plácida quando a menina a tomou pela mão logo depois de sua morte...
Afastando o mal estar destes sentimentos Jorge se atirou sob um banho frio, preparou dois pães com mortadela e um copo de leite com chocolate e decidiu sair do seu sala-e-quarto na Glória (bem ao lado do hospital) e dar uma volta, talvez encontrar com a Elisa para bater um papo e afastar os pesadelos da noite anterior.
Sentado em uma pedra no Aterro do Flamengo, bebendo um coco, ligou para a amiga.
- Elisa! É muito cedo?
- Ãh? Que horas são Jorge? 'Pera aí... Ich! Uma da tarde? Dormi demais! Que dia é hoje! Sexta? Sábado?
- Calma! Você não trabalha hoje! É sábado! Hehehe! Desculpe te acordar, faz um sol lindo e achei que você gostaria de beber um coco e bater papo!
- Ah... Tudo bem! Mas estou toda amarrotada agora, que tal a gente almoçar juntos lá pelas três da tarde?

primeiro - anterior

sexta-feira, abril 11, 2003

Burocracia

- O senhor certamente forneceu o CPF errado, este tipo de falha não acontece aqui! Estou dizendo, em nove anos em que trabalho na Telemar...
O pesadelo de todo Internauta desde os tempos da Telerda, muda o nome, até a qualidade do serviço andou mudando, mas o caos do atendimento permanece fiel às suas origens!
A longa história que culminou na frase acima começou três anos atrás quando adquiri a linha de um conhecido e a Telemar se recusou a mudar o nome do titular...
- A linha já foi transferida três vezes senhor, não fazemos a quarta transferência. O senhor pode ficar com o nome antigo ou desistir da linha...
Como assim desistir de algo por que pagamos 600 Reais ou mais? Nem o meu conhecido nem eu gostaríamos disso e assim a linha foi sobrevivendo. Até que me fartei e decidi aproveitar que estava mudando de endereço para matar a malfadada linha.
Pedi uma nova que nunca chegava - vamos encurtar esta novela - e acabei pedindo a tranferência da velha depois de confirmar a inexistência de planos para a instalação da nova. No mesmo dia chegou a linha, não a transferida, mas a nova! Ligo então para cancelar a tal transferência.
- Acabo de receber minha linha nova apesar de ter recebido a informação de que sequer havia registro do pedido e quero cancelar a velha.
Pronto chegamos ao início da história, a atendente me interpelou com aquela afirmação lá no primeiro parágrafo. Queria me convencer que jamais a Telemar desconheceria o agendamento de uma instalação duas horas antes dela ser feita...
Aqui ao meu lado tenho uma carta da Telemar, chegou estes dias, depois da instalação da linha. O texto educado informa que meus documentos não foram aceitos e a nova linha não será instalada... Com um pouco de sorte eles esquecerão de mandar as contas!

quinta-feira, abril 10, 2003

Maré

Vinte minutos passam rapidamente quando estamos escrevendo ou lendo, demoram uma eternidade quando os gastamos dando voltas no abafado e saturado estacionamento subterrâneo do Downtown. Vagando entre os labirintos de paredes iguais e pilastras chega a parecer que se trata de um mundo subterrâneo de fronteiras desconhecidas, mas é apenas o efeito do excesso de CO2 e falta de O2 no sangue!
Do lado de cima milhares de jovens (e alguns não tão jovens) desfilam pela paisagem noturna do shopping que parece uma cidade cenográfica. Usam as melhores roupas, não necessariamente as melhores, mas com certeza as que melhor os identificam com sua tribo.
Em cada esquina um bar, um grupo ou solitário cantor noturno procura atrair atenção: country, rock, blues, forró... Este último dono da maior antenção. E o cotidiano avança por algumas horas alheio a outros mundos onde gente mora nas ruas ou bombas chovem...

quarta-feira, abril 09, 2003

Utopias

Porque utopias são necessárias? Porquê para algumas pessoas a traqüilidade de um dia idêntico ao outro é um conforto e para outras é um pesadelo!? Para o segundo grupo, onde este que escreve se inclui, a utopia é a salvação da sanidade e do sentido da vida.

terça-feira, abril 01, 2003

Protestos mudos para ouvidos moucos

Minutos de silêncio são gritos contra o que não somos capazes de nominar ou são espaço para reflexão em respeito dos que partiram. Em alguns casos é também uma pausa para que não se tome ações precipitadas sob o signo das paixões, da ira.
Muitas vezes o melhor protesto é o exemplo, é deixar suas pegadas apesar dos esforços para apagá-las. Mais eficaz que levantar os punhos para os céus e maldizer a loucura dos homens (ainda que apenas uma minoria anônima) é buscar a própria sanidade, em cada fragmento cotidiano.
Assim este blog volta a sua melodia de costume, encontrando novas harmonias apesar das interferências de Melkor . Afinal, enquanto andamos pela Carioca lá está o guitarrista de sempre tocando seu rock dos anos 60s, os pequenos geradores a gasolina que alimentam a venda de sertanejos e altaneiros andinos... Enquanto um tornado devasta as costas do Pacífico a vida continua no Atlântico, mas em cada esquina escuta-se uma pequena voz que se levanta contra a loucura e busca com humor um bocado de bom senso.