quinta-feira, abril 29, 2004

Uma vela na penumbra

Pleno coração de Copacabana, nas calçadas da Nossa Senhora centenas de pernas dançam sem destino aparente cruzando, sem ver, a pracinha.
O tempo parece parar cercado pelos prédios bucólicos, um porteiro ou outro sentado diante da portaria e a brisa preguiçosa.
No canto esquerdo se abre um portão, entrada dos fundos de algum prédio. Dele sai uma escadinha que sobe até uma curiosa área lateral.
Parece tirada de alguma vila, destas de gente simples e superticiosa. Lá no alto da escada duas dúzias de pessoas, umas chiques e bem arrumadas, outras humildes com roupas velhas.
Em fila todas se dirigem a uma senhora de branco, baixinha, olhos claros, brilhantes e sempre surpresos como os de uma criança.
A senhora passa as mãos ao longo do corpo de cada um por um minuto ou dois, reza em silêncio, deseja saúde, paz, amor e boa sorte.

terça-feira, abril 27, 2004

Samhain - Halloween

Para quem é mais ligado a esta moda naturalista! Sexta agora é o ponto máximo do outono, veja só! Para os Wicca é a época do Halloween e se comemora a noite mais mágica do ano, é o ano novo deles porque neste momento o Deus morre e passa a existir apenas como o futuro filho da Deusa.

Gosto muito desta mitologia (que lembra bem Geia ou Gaia dos gregos) que nos remete de novo à essência da vida antes de inventarmos edifícios e outros muros que nos encerram em um mundo de fantasia sem estações e onde a vida brota nas prateleiras dos mercados espontaneamente...

segunda-feira, abril 26, 2004

Romeu e Julieta

Entre as ruas estreitas que cortam a favela, entre os tiros trocados entre traficantes, envolvido pelo cheiro das valas que escorrem junto ao lixo que se acumula nas esquinas, ele se apaixona por cada bela moça que passa como se fosse a mais bela de todas! Até que outra ainda mais bela rouba o lugar da anterior!
Enquanto seu irmão desaparece para sempre fugido ou "queimado" e sua irmã se torna a namoradinha do dono do ponto ele só vê o dia fulgurante no brilho dos olhos dela!
Entre uma paixão e outra os atos mais loucos de amor lhe parecem sãos! Por amor ele pularia do Cristo Redentor, assaltaria um banco, morreria...
Ela, menina sozinha, de família tão pobre - e honesta - quanto a dele, se perde em suspiros esperando o fim da adolescência para sonhar com outros príncipes, com paixões que a devorem por dentro e façam soar sinos tão altos que abafem o uivo das sirenes ou o pipocar dos tiros.
Entre as paredes nodosas de madeira embolorada e úmida dos barracos da favela a paixão segue anônima, afogada pela correria dos pés descalços ou pelos olhos cegos dos televisores...

sábado, abril 24, 2004

Cantiga de Esponsais

Em busca da essência das coisas acabamos escrevendo pelos cotovelos tentando descascar camadas e mais camadas de falsas verdades emboloradas para achar o átomo de uma idéia. Então um dia alguém vai direto ao assunto sem a menor cerimônia:
"...mas religião é isso aí: deixa o cara procurar no imaginário explicações para o mundo real, deixa o cara aceitar que expliquem o mundo pra ele ao invés de tirar as próprias conclusões e se foder sozinho"(by Nat)

quinta-feira, abril 22, 2004

Zen

Um grande e luxuoso salão com centenas de mesas de madeira de lei circundando uma enorme ilha de sushis, saladas, queijos e outros acompanhamentos. Os garcons caminham entre as mesas bem espaçadas carregando espetos com deliciosas carnes. Nas mesas grandes e pequenos grupos de pessoas conversam animadamente enquanto provam as delícias da carne.
Uns são ruidosos, outros apenas comem silenciosamente e outros ainda passam despercebidos, mas em uma das mesas uma moça mergulha sua atenção em seu prato como quem olha para o fundo do mar através do fundo de vidro de um barco especial.
Aparentemente alheia a todos os ruidos, luzes e outras distrações ela prepara sistematicamente seu quibe cru misturando-o com a hortelã que ela mesma corta com a faca de carne segurando delicadamente a outra estremidade com dedos cuidadosos e delicados.
Então um flash pipoca em algum lugar, seu rosto se levanta suavemente enquanto um sorriso luminoso se espalha por ele. Os olhos claros e faiscantes buscando calmamente a lente indiscreta. sua voz escapa suave e alegre entre os lábios:
- Foto!

terça-feira, abril 20, 2004

Sinfonia

O choque com o ar abafado da estação de metrô suspende momentaneamente o rumor das pessoas que descem as escadas e se espalham lentamente pela plataforma. Aos poucos as vozes se levantam, juntando-se à profusão de imagens incertas que vagam pela grande cidade: nordestinos, nisseis, gente simples e gente complicada, enfim, brasileiros...
Como instrumentos da filarmônica que se afinam antes do espetáculo a cacofonia de ondas, vozes, passos, pigarros e resmungos ressoam misteriosamente em suave sinfonia.
No meio do caos...

Aos amigos...


Descobri recentemente que há humanos que percebem quando atraso o boletim semanal! Portanto estou avisando que esta semana ele só sairá amanhã de noite pois ainda não implantei os recursos necessários para fazê-lo longe do fiel iBook que ficou no Rio...

segunda-feira, abril 19, 2004

São Paulo

Dizem que o ruido do big-bang, do momento da criação do universo, pode ser detectado até hoje entre a radiação de fundo captada pelos radiotelescópios.
Neste momento entra pela janela o rumor constante de carros fluindo por vias asfaltadas que mais parecem veias de um grande gigante por onde flui vida todo o tempo, pela manhã o rugido vai crescendo, à tarde se levanta mais agressivo, de noite.
É o som da explosão da civilização.

domingo, abril 18, 2004

Terra dos homens

A vastidão negra se estende abaixo de nós, então surge um ponto de luz, mais adiante outro, de quando em quando o solo sob o avião é invadido por luzes; algumas desordenadas e caóticas, outras geometricamente alinhadas.
Marcas de ilhas de histórias humanas, sinais da presença de famílias isoladas ou grandes cidades alheias à escuridão virgem que as cerca.
Territórios além da consciência das cidades onde Lobisomens, mulas-sem-cabeça e caaporas podem vagar livremente sem jamais serem vistos por outros senão os habitantes das pequenas estrelas solitárias e silenciosas.

sábado, abril 17, 2004

A vida sob o sol

Ao lado das pessoas que dão uma corridinha matinal antes de voltar a seus apartamentos de um milhão de dólares punhados de meninos de rua, expulsos das suas casas de quatrocentos Reais pelos mais diversos motivos, vagam sem destino certo. Uma tensão constante permeia o ar.
Então dizem que os que tem dinheiro tem direito de aproveitá-lo...
Imagino o prazer que pode haver em um apartamento desses com home theaters de cem mil Reais que supera o prazer de mergulhar nas ondas do mar, de caminhar por uma floresta ou sentar no alto de um morro para observar a beleza da cidade...

quinta-feira, abril 15, 2004

O Velho Enciclopedista

Este alucinado cidadão que vos escreve cercado de diversas traquitanas computadorizadas tem uma confissão a fazer... Sou adepto do trabalho manual, de manter sob meu total controle o funcionamento das minhas "coisas"! ;-)

Não é só questão de se revoltar com o Word nas raras vezes que sou obrigado a usá-lo e ele insiste em mudar o que escrevo achando que pode adivinhar o que tenho em mente!

A verdade é que, como já andei confessando, este blog é feito na mão, direto no dreamweaver! Devo ser o equivalente nerd do escritor que se recusa a abandonar a máquina de escrever!

Pois este velho antiquado está cedendo à pressão da necessidade e da tecnologia! ;-) Em breve estarei migrando para o Wordpress, mas antes disso, aliás daqui a pouco, vou passar este blog para o Blogger, é inclusive uma maneira de facilitar mais tarde a migração de tudo para o Wordpress.

Isso significa que a lista de meses antigos ao ai lado deve estar incompleta. Se você for mais alucinado ou alucinada que eu e fizer questão de ver os postos antigos comece clicando aqui.

quarta-feira, abril 14, 2004

Recorrente

O mesmo momento nunca ocorre duas vezes, alteram-se os movimentos no predicado, mudam os estí­mulos dos verbos e a razão dos sujeitos, mas a frase sim se repete infinitas vezes...

A mesma cidade, a rápida via de tráfego conectando a Lagoa a São Conrado, os mesmos bólidos de metal bem polido, o mesmo povo dividido entre a violência das disputas pelo tráfico de drogas e das mí­dias quase terroristas...

Nos canteiros laterais algumas árvores acompanham um muro esquecido pelos pedestres e ambulantes. Entre uma palmeira e um arbusto sem nome uma pequena fogueira se levanta, controlada por dois habitantes das calçadas... Preparam seu jantar e o papo sobre as lutas e conquistas do dia... Extamente como aqueles outros que logo chegarão em casa e, se não mergulharem na programação da tv por assinatura, talvez conversem sobre a violência nas ruas.

segunda-feira, abril 12, 2004

Maniqueu e a Imprensa Marrom

Basta de samurai! ;-)
Nossa mente é mesmo uma coisa curiosa! Se bem me lembro nunca havia escrito no blog algo com temática oriental (embora não faltem reflexões que se alimentem das filosofias orientais como budismo e taoismo) até agora. Então vem quase um conto! Mas vou parar aqui senão isto vira uma novela em episódios (o que não é uma má idéia, mas vai contra o objetivo experimental do blog).
Saindo um pouco dos devaneios para variar...
"O Iraque é aqui!" estava estampado na primeira página do JB... Já viu aquelas pessoas, carniceiros sem penas, que ficam aumentando todas as desgraças e se esforçando para mostrar que o mundo é um pântano de dor e maldade? São aqueles tipos que escutam barulho de fogos e se apressam em dizer que são tiros ou que chegou a droga no morro. Gente que leva o maniqueismo às últimas consequências.
E por falar em maniquei­smo... A palavra vem de um tal de Maniqueu, um sujeito lá da Babilônia do século III dc que achava que o mundo era dividido por duas forças: a do bem e a do mal. Para ele o objetivo dos homens de bem era combater o mal. Foi considerado herege (pelos seguidores de Zoroastro) e morreu em cativeiro... Como os tempos mudam, não? Hoje todo mundo vive de acordo com as idéias do cara...
Mas, bem, o negócio é o tal do Iraque aqui... Esta imprensa marrom já não me surpreende faz um tempo, mas comparar a violência do crime com a violência da guerra é puro terrorismo! É apontar os canhões do ódio na nossa cara e disparar sem dó!
Enquanto o crime é fruto do desgoverno e da desigualdade social as guerras são o horror cego de poderes polí­ticos que dispõe de vidas humanas como se fossem põe anônimos em um tabuleiro de xadrez...
Gostaria que alguém mandasse estes jornalistas para uma temporada de um mês no Camboja, Iraque ou Afeganistão!

Yuki e a Morte

A madeira da estalagem estalava sob os seus pés descalços, as vozes e risadas das pessoas comendo com palitos ao redor das mesas baixas enchiam o ar como uma névoa densa.

Yuki servia os pratos apesar de ter apenas 11 anos, mas tinha que ajudar o tio já que perdera os pais e não tinha onde morar.

No meio de todo o barulho, num canto perto de uma janela, a pequena Yuki percebe um silêncio... e uma fina brisa fria. Era como se ali houvesse uma bolha de água onde nenhum calor ou ruido penetrasse... E bem no meio estava Ela...

Sua face lisa e branca como a neve, os lábios negros como a noite assim como seus olhos! Mas o sorriso suave e quente! O olhar vivo e brilhante que a fitava e piscou de volta... Ela pulsava uma vida estranha!

Foi então que entou o homem, o traí­do em busca de vingança! Yuki via tudo acontecer em câmera lenta... Enquanto o brilho da lâmina sedenta de sangue surgia do meio das vestes do homem Ela, a moça no fundo da estalagem, se levantava. Invisí­vel para todos exceto para Yuki. Se levantava e tocava suavemente cada aldeão que era ceifado pelo samurai. E a cada um que tocava uma névoa azulada ia se formando ao seu redor. Uma névoa azulada e luminosa que formava rodamoinhos que agitavam o seu cabelo negro e curto.

Quanto tudo acabou o brilho do aço veio em sua direção, mas Yuki mantinha os olhos fixos na bela face dEla e nada poderia assustá-la enquanto visse aquele rosto!

A lâmina a feriu, fez arder sua bochecha, mas no seu ouvido Ela lhe dava um beijo frio e sussurava "hoje não.."

Na outra estremidade da katana o samurai a olhava no fundo dos olhos e, nas profundezas daquele olhar puro e infantil, pode ver a imagem dEla. Seu espí­rito se quebra e volta-se para o fim inexorável; seu coração se aquece e, esquecendo-se do curso da lâmina no rosto de Yuki, vira-se e parte.

Enquanto o cansado samurai parte Ela o acompanha com passos suaves, mas antes de sumir vira-se uma vez mais para Yuki, abre um sorriso com dentes brancos, franze os olhos fazendo covinhas no nariz que lhe dão o ar de um coelhinho... Levanta uma das mãos acenando e diz "até outro dia Yuki!"

sexta-feira, abril 09, 2004

O Cedro e o Zéfiro

Encolhido em um canto eu observava a vingança do ronin cair sobre todos nós, assistia amigos e parentes entregarem suas almas àquela lâmina fria. Não havia uma voz que se levantasse para implorar piedade, nossa vergonha não nos permitiria!

No meio da casa estava a pequena Yuki que acabara de completar 11 anos... Ela observava a fúria vingadora sem derramar uma lágrima! Parecia esperar sua vez de encontrar os pais mortos ano passado na enchente. Apenas o seu cabelo balançava ao vento dos movimentos desesperados dos que procuravam fugir inutilmente.

Enquanto eu piscava os olhos tudo terminou e não havia qualquer movimento entre os corpos espalhados no chão. No centro de tudo se erguia o samurai como um grande cedro. Sua lâmina riscando o rosto de Yuki enquanto uma brisa suave atravessava as janelas vindo acariciar os finos fios de cabelo da menina.

Foi então que ele se virou... Passou os olhos por mim sem me ver, deu as costas para a menina, mas sem retirar a lâmina que ainda feria sua pele fina. Lentamente seus passos atravessaram a distância até a porta levando a lâmina assassina que deslizava pela face de Yuki aprofundando sua ferida... Ela nem ao menos piscava enquanto o sangue pingava em suas roupas simples. Enfim o aço abandonou seu rosto deixando uma cicatriz que anos mais tarde mal se notaria, mas em sua alma a firmeza do aço permaneceu para sempre...

Fúria

Tomado de ira sua lâmina se liberta e gira pelo ar dizimando os aldeões sem piedade. Os gritos de pavor desaparecem nas gargantas cortadas e nos olhos vidrados e sem voz: pavor!

Pela prata da katana o sangue escorre escuro e denso espalhando gotas nas paredes de madeira enegrecida pelo rigor do inverno.
Almas são tragadas sob a fúria do samurai e os gritos de pavor devorados pelo eco surdo do desespero.

Finalmente o brilho cruza o ar ao encontro da face suave da criança, mas ao tocá-la criando um filete vermelho na pele clara os olhares se encontram, ódio e entrega, o tempo se suspende, uma sobra cai sobre os dois e tudo fica azulado, noturno... somente as batidas ensurdecedoras dos dois corações enchem o lugar coberto de corpos e silêncio.

Lentamente a lamina desliza riscando a fina face deixando na menina a marca eterna da sobrevivência.

quarta-feira, abril 07, 2004

Lotus

A brisa temperada do outono, o brilho opaco da lua cheia escondida pelas nuvens que prometem chuva - que acaba não vindo - tudo isso é para todos, mas alguns fecham suas janelas e colam os rostos nas telas de tv, outros dormem nos cantinhos das ruas que é tudo que eles... possuem?

Na rua passa um carro bem encerado, na calçada duas meninas com roupas novas e, lá do chão, as pernas cruzadas, um rosto alegre de criança pede um trocado. Não tenho e, apesar dos argumentos da minha consciência, não gosto de dar.

Com uma leveza e sinceridade que não vejo faz tempos vem a resposta...

- Obrigado! Que Deus te abençoe...

Não havia naquele rosto o menor traço de revolta ou falsidade... Aquela criança que nada tem possuia algo que tenho visto cada vez mais raramente!

terça-feira, abril 06, 2004

Esbat

A lua cheia aparece no céu encoberta pelo véu da noite, nuvens que a envolvem como um fino tecido transparente traçando linhas em sua superfície brilhante.

Impossível não pensar nas florestas que, ainda ontem, se estendiam sob este céu no lugar dos edifícios de copacabana... As florestas e suas feras noturnas.

O pipocar de um tiro distante denuncia que a noite ainda desperta predadores e o perigo continua a se espalhar sobre a terra úmida. Apenas sua aparência mudou! Antes era um animal, índios defendendo suas culturas, escravos buscando a liberdade... Hoje são outros os caçadores.

Por trás do véu ela assiste a passagem das eras indiferente ao maniqueísmo e à disputa entre seus filhos afoitos e ambiciosos. Seguindo seu curso a lua cheia oferece sua luz para iluminar os passos indecisos que sobem as escadas em direção ao morro, em direção ao lar.

domingo, abril 04, 2004

Jair e Odair

"Pai! Acabou, pai!"

Do outro lado o seu Odair não entende nada! Que voz era aquela que veio logo respondendo que "acabou!" ao seu "Pronto! Mercado do Odair, boa tarde!"?

Ah! Sim! Ele tinha um filho na capital, lá em São Paulo... É mesmo.. Mas o que teria acabado?

"Como é? Jair, é você meu filho? O que é que acabou menino?"

"Acabou a grana pai! Tô sem um tostão no bolso! Faz três dias só como pão e mesmo assim porque dei um jeitinho! Lavei umas coisas na padaria... e cuidei de carro na rua!"

O coração de seu Odair apertou! Eles não tinham lá muita coisa, mas ali na terrinha deles, na pequena cidade com meia dúzia de ruas e pequenas fazendas pobres espalhadas ao redor bem longe, mas bem longe mesmo... Ah! Lá pelo menos sempre tinha um bom mocotó ou uns cajás para comer!

"Mas você não estava com emprego certo, filho? O que aconteceu? Volta para casa! Sua mãe tem saudades de você, menino!"

Do outro lado da linha vinham barulhos ruidosos de carros e o chiado das portas pneumáticas dos ônibus. No fundo de tudo parecia haver um soluço abafado... Choro de arrependimento, desespero, sabe-se lá...

"Tava tudo bem meu pai! Trabalhava em obra e fazia cursinho de noite, estudava, entende meu pai? Mas ai a construtora teve problema, teve que demitir... Pelo menos o cursinho ainda posso fazer... É grátis, sabe? Numa Igreja!"

E para que aquele menino precisava de estudo! Seu Odair não tinha quase nenhum! Aprendeu a fazer conta nos dedos e ninguém lhe passava a perna no mercadinho!

"Mas então volta dai para cá filho! Eu tenho um dinheirinho aqui que deve dar para sua passagem! Volta que sempre tem precisão de alguém de confiança aqui no mercado!"

Silêncio na linha, ou melhor, apenas o ruido caótico de vozes, passos e o ronco de motores. Depois de vários segundos a voz do filho vai subindo aos poucos do meio de todo aquele ruido... Uma voz resignada, cansada...

"Me acostumei aqui meu pai! O senhor não imagina como é este mundão de prédio! As coisas maravilhosas nas vitrines das lojas, os carrões que andam pelas ruas! A belezura das moças que andam com roupas chiques..."

Mais uma longa pausa, o pai se cala sem saber o que dizer sobre tantas coisas que ele nunca viu... Quase se pode ouvir o batimento do coração escravo do filho do outro lado da linha.

"Pai! Fica ai no mercadinho! Não vem para cá não, viu? Esta terra só tem estrada chegando e nenhuma saindo! Eu ligo quando der! O cartão que achei no chão tá acabando!! Benção meu pai!"

"Deus te abençoe filho! Deus te..."

Click... tuu - tuu - tuu - tuu - tuu

quinta-feira, abril 01, 2004

Alou!!!

Enquanto o arranhar irritante do motor mal lubrificado do elevador berra ritimadamente por tempo suficiente para se tornar apenas mais um ruído de fundo com o qual nos acostumamos, o elevador vai subindo com seus dois passageiros encostados a suas paredes.

Um deles, um rapaz, tem sua atenção totalmente roubada pelo celular que ele mantém firmemente apertado contra o ouvido enquanto insiste com uma voz impaciente e um jeito de dizer as palavras como se as soletrasse.

-E-u t-e l-i-g-u-e-i n-o f-i-n-a-l d-e s-e-m-a-n-a, m-a-s d-a-v-a f-o-r-a d-e á-r-e-a!!

Apesar da impaciência o final de cada frase ganhava uma entonação carinhosa, até delicada .

- É o que eu estou te dizendo! Só dava fora de área ou caia direto na caixa postal!

A voz do outro lado falava copiosamente impondo longos segundos de suspense. Uma mulher certamente, mas esta suposição é pura intuição já que o celular permanecia tão grudado à orelha do rapaz que não se ouvia sequer um sussurro do outro lado.

- Olha... Ai onde você está... é município! Tá me ouvindo?

Cada palavra ainda mais soletrada do que antes, mas inultimente!

- Município! Ai é município!

O elevador chega ao seu andar e lá vai ele repetindo

- Município!! M u n i c í p i o ! ! !

Os guinchos do elevador crescem enquanto ele sobe se aproximando das máquinas.

Lá do fundo do poço vem a voz abafada:

- Município....

E vai morrendo na distância...

Dia dos tolos



Uns dizem que começou na França, outros que é coisa da mudança do calendário Gregoriano e ainda tem os que dizem que surgiu com o golpe de 64. Seja como for esta mania de fazer os outros de tolos nunca me agradou. Felizmente o meu passou em branco este ano!