quarta-feira, junho 30, 2004

Sasha

O corredor estreito parece se estender ao infinito. Lançando o olhar para frente, esticando a cabeça e espremendo os olhos ela tem a impressão de que ele se vira lentamente para a direita.

O chão de tapete vermelho de cerdas grossas está coberto de espelhos quebrados que ferem seus pés descalços enquanto ela segue adiante somente porque não há mais o que fazer.

Nas paredes de madeira trabalhadas como portais em arco os espaços vazios dos espelhos há muito estilhaçados a observam como olhos cegos, alheios.

Nos estilhaços espalhados os reflexos se juntam formando um mosaico com detalhes do seu rosto, do teto pintado para simular o céu, das paredes e do pesado tecido que ornamenta a sanca. São imagens assustadas, curiosas e intrigadas que olham para todos os lados em busca de respostas, de um ponto seguro onde possam descansar e se esquecer do caminho.

Suas pegadas de sangue a seguem mergulhando na escuridão onde ela deixou seus antigos "eus" e ela segue em frente até deixar para trás as paredes vazias e chegar a outras onde espelhos bem polidos refletem com perfeição todas as coisas que não estão ali, mas por ali já passaram ou virão a passar, como seus sonhos, seus medos, suas ilusões.

terça-feira, junho 29, 2004

Argh!!

Nota mental: migrar para o Wordpress...

Ontem não teve blog porque não teve tempo, hoje não tem porque fui fazer uma micro alteração e o Blogger fez o favor de bichar o meu template todo... Humpf! Tarde demais para ficar "folheado" código em CSS...

domingo, junho 27, 2004

Móvel novo

Imagino que os visitantes que esbarram aqui fiquem imaginando que raio de blog é este, afinal quase nada aqui parece faze muito sentido. Cada post, na verdade, é um tipo de reflexo num espelho. Algumas vezes a imagem é distocida, outras clara e direta. Muito embora as imagens claras sejam raras pois assim me parece que é a própria realidade, sempe se escondendo até do filósofo mais lúcido.

Para as coisas ficarem menos obscuras desnecessariamente decidi colocar um nome e subtítulo aqui. Algo como:

Galeria de Espelhos
"Uma exposição de reflexos para ver nosso mundo por um novo prisma, para despertar a surpresa e o questionamento"

Mas estou aberto a sugestões!

sábado, junho 26, 2004

Perfeição refletida no lago

Nos troncos úmidos os cogumelos crescem tão rápido que pode-se ouvi-los, os galhos negros das árvores se enchem de flores amarelas, rosadas, brancas, azuis. A brisa fresca traz o sereno da manhã que inicia com os primeiros raios de sol.

O pequeno caminho do bosque ainda evita a luz amarela que logo invadirá os galhos altos desenhando sombras coloridas no caminho de cascalho, mas o velho e seu aprendiz já vão a meio caminho em direção à planície além do bosque. Tão cedo o ar gelado toca seus narizes com o frescor do orvalho.

Minutos antes o orgulhoso aprendiz comentou com seu mestre que uma vida vivida em busca da flor perfeita não é uma vida desperdiçada.

Cercam-os milhares de flores de todas as aparências, cores e odores, mas todas com alguma falha visível. Seja uma pétala rasgada, a falta de simetria ou um estranho aroma.

O mestre então se abaixa e colhe uma flor caida ao lado do caminho e a entrega ao pupilo. Já amassada, perdendo a cor e murcha pois a vida que compartilhava com o arbusto já não a preenche mais.

"Aqui está uma flor perfeita"

E a recoloca em seu lugar...

Embotado de cimento e lágrimas *

A luz desaparece das fachadas dos grandes palácios da Cinelândia deixando o véu de sombras cobrir as colunas da assembléia, as escadas do municipal, a varanda da Biblioteca Nacional...

A legião de passos repetitivos dos construtores cansados atacam o chão sujo de pedras portuguesas arrastando as correntes pesadas de uma vida pela metade, uma vida de cimento sem música, de lágrimas sem arte. Uma vida de máquinas de espirais de carbono programadas pelo martelo da repetição e do calor das forjas da razão.

Então entre as sombras se levanta o movimento inesperado, a melodia inusitada. Bailarinos rodopiam em movimentos que laçam o sonho perdido no leito do lago daquelas consciências embotadas. Uns refletem os movimentos duros dos becos escuros das grandes cidades, outros a paixão e o ciúme e depois desaparecem entre a floresta de sombras que aplaude e leva para as horas da noite o refresco do sonho.

quinta-feira, junho 24, 2004

Família de rua

Os olhos humildes olham embotados os carros que param no sinal, as pessoas que passam apressadas e os altos edifícios onde nenhum deles jamais entrara, e talvez onde jamais venha a entrar.

Na bancadinha de caixotes a mãe vende paçoca, amendoin e balas. O mais novo não passa dos 4 anos e aprende a enfrentar a vida com coragem atravessando o sinal onde toneladas de metal esperam para arrancar.

Logo a noite cai e vão se recolher para os buracos sob as pontes, sonhar com os dias que passam e fantasias que insistem em voltar.

Vez por outra um espectro noturno, pessoas que vivem da noite ou na noite, olham para as pessoas encolhidas nas frestas da cidade e se enchem de ideais humanistas de justiça social.

terça-feira, junho 22, 2004

Povo de mármore

Eles nasciam do jeito que iriam morrer: adultos, fortes, altos, bons ou maus de acordo com o que estava escrito.

Viviam oitenta ou cem anos sem que jamais lhes surgisse uma ruga, sem que jamais vissem o mundo de outra forma que aquela que viram ao abrir os olhos pela primeira vez.

No fim simplesmente paravam, oscilavam em pé por alguns segundos e tombavam no chão se desfazendo em mil pedaços.

Assim era o povo de mármore...

Deixaram de existir muito antes do tempo dos seres de carne, dos humanos que vem ao mundo pequenos e cegos para ir crescendo, aprendendo a se mover e ir mudando até o último suspiro de vida.

No entanto nas páginas dos jornais, nas telas das TVs nos fazem crer que o povo de mármore ainda vive entre os políticos, marginais e loucos...

Pode ser, lá na fantasia dos tubos catódicos! Na realidade do asfalto a alma insiste em se transmutar...

segunda-feira, junho 21, 2004

Atlas *

As ruas de qualquer grande cidade moderna fervilham com os passos apressados dos que vão de um prédio a outro, a restaurantes ou para seus carros.

No centro apinhado de camelôs e moradores de rua as pessoas fluem como folhas num rio de correnteza ruidosa... São leves como o algodão das nuvens no céu azul. Os pesos da pobreza, das diferentes formas de violência e das responsabilidades apenas raramente as atingem. Estão protegigas por antolhos.

No meio destas imagens cinzentas uma moça de roupas coloridas caminha arrasando um peso invisível, mais adiante um jovem rapaz abraçado a livros, de trás de uma árvore vem um senhor de barbas longas, sentada no banco da praça em roupas sujas e rasgadas uma criança... Todos encurvados, olhares profundos fixos no horizonte invisível atrás dos prédios. Lábios cerrados e mãos firmemente fechadas... Em seus ombros os pilares esquecidos da abóboda celeste.

Por um instante se entreolham e um vento inesperado levanta do chão as folhas deixadas pelo outono, por um instante a rua se enche de movimento, caótica harmonia e dança...

Esta é uma homenagem velada aos sonhadores que acreditam e aos bailarinos que nos visitarão esta semana no Dança em Trânsito.

sábado, junho 19, 2004

Ambulantes...

"Senhoras e senhores, estou aqui para oferecer um passatempo para a sua viagem! Balinha de coco que desmancha na boca, caneta - lá na papelaria é cada uma dois reais - drops de hortelâ com dez unidades no tubinho; tudo por um real, gente!"

No ônibus a maioria dos rostos se viram para o outro lado evitando o seu olhar para não dar a impressão de estar interessado. Uns tem medo, outros sequer o percebem ali.

É mais uma legião de fantasmas modernos que parecem se materializar ao subir pelos degraus do ônibus. Somem como fumaça ao ganhar novamente a rua, mas há uma casa para cada um deles. Amores, amizades, torcidas pelo timão nos bares da favela, sonhos preservados, desilusões e esperança... Uns fogem do crime que já lhes roubou dois irmãos, outros encontram ali uma chance de dignidade, mas trocariam sem pensar por um emprego fixo...

Histórias que escapam aos olhos que tudo vêem da mídia.

sexta-feira, junho 18, 2004

Arte desce o morro

Sexta-feira e a Cobal do Humaitá coberta de gente que vai comer uma pizza, um galeto, bater um papo, beber um chopp. Esta entretanto é uma sexta diferente: Uma vez por mês ali se dá o Cavídeo Cobal Drive-in.

No grande telão acima de todos vão passando nove curtas do Nós do Morro, um grupo da favela do Vidigal.

São pequenas histórias, documentários e exercícios que passam por cima de todas as dificuldades e chegam aos nossos olhos e ouvidos com a força da paixão pelo trabalho e pela arte...

- Pai! Meu roteiro foi premiado! Vou ganhar R$50.0000,00!
- V... Filha! Voc... Você vai comprar uma casa?
Com o sorriso claro e livre de rugas que geralmente só vemos em crianças ela responde:
- Não pai!! Vou fazer um filme!

A quem se aliena de coisas como estas só resta se revirar na cama com medo da violência...

quinta-feira, junho 17, 2004

Luz, sombra e movimento

O sólido cone de luz atravessa a escuridão revelando pequenas partículas em suspensão. Lá adiante ele inside sobre o rosto da menina que abre um vasto sorriso ao receber o seu calor nas bochechas...

A luz invade cada veia fazendo fervilhar o sangue, o coração bate mais forte e o mundo inteio desaparece, tudo é luz e sombra, como se o seu corpo fosse um objeto celeste no espaço sideral.

Lentamente seus braços se movem deslizando por ondas invisíveis de ar e sonho. Os dedos oscilam como se deixassem passar o sopro da primavera entre eles e, naquele momento, parecem brilhar.

O grande cone luminoso que corta a escuridão do teatro se esforça para acompanhar a menina que se transforma em movimento e som lá no palco.

A platéia invisível - para ela - bebe ansiosa os flashes do brilho dos seus olhos, da graça e da curvatura de dorso, pés, braços e pernas que rodopiam como a névoa das madrugadas de outono quando o primeio vento morno da manhã vem soprá-la de volta ao reino de Oberon.

É a dança tomando conta da cidade...

quarta-feira, junho 16, 2004

Explicando...

Bom, em geral deixo os posts deste blog sem explicação, acho que assim cada um tem sua própria interpretação e tira dela o melhor para si. Além do mais nem sei se as pessoas que passam aqui realmente lêem ou curtem o que lêem, então faço daqui um espaço de exercício literário.

O post anterior, todavia, achei que eu devia comentar.

Temo que nossa civilização esteja sofrendo de um tipo de neurose, ou normose, quem sabe? que nos induz a não interferir nos rumos da nossa espécie.

Nos deixamos abafar pelo peso de instituições maiores que nós e deixamos atrocidades acontecerem ao nosso lado... Até mesmo quando elas ameaçam inclusive nossa própria integridade.

O post anterior tenta trazer este questionamento à tona...

terça-feira, junho 15, 2004

Amem *

Os corredores escuros deixam passar o frio noturno que atravessa as grades. Apenas o som baixo dos seus passos e gemidos abafados quebram o silêncio noturno como uma névoa colada ao chão.

Atrás das grades se apinham centenas de presidiários que encaram seus ódios e seus medos nas horas esquecidas da madrugada.

Em um canto um rapaz se encolhe tremendo, os olhos fixos e vidrados, o corpo tremendo de frio e dor, o espírito há muito dilacerado. Ele espera os dedos frios da morte virem levá-lo.

Os passos no corredor seguem seu caminho deixando para trás as sombras. Fim de turno, mais uma hora e ele estará ao lado dos seus filhos e das mãos calejadas e com aroma de tempero de sua esposa que o espera no barraco frio de paredes finas.

domingo, junho 13, 2004

Memórias de Deus

- É padre! Tá ficando difícil colocar os joelhos no chão e rezar...
- Por quê, filho?

Os dois homens caminham pela calçada ao lado de uma obra, a tarde ainda vai caindo, mas a luz já assumiu o tom alaranjado do outono. Ao lado do padre de batina, um homem de mãos grandes e calejadas, rosto duro, mas ohos puros como os dos nossos primos chipanzés. Foi um dia quente e a blusa leve do homem está marcada pelo suor de um dia de trabalho na obra ao lado, onde o bate-estaca ainda martela o chão a cada trinta segundos.

- Deus nos deixou, padre! Antes, ele abria os mares, multiplicava o pão, trazia os mortos de volta à vida e castigava os tiranos que escravizavam seu povo com pragas, como fez no Egito. E agora, padre?

O pobre homem tem os olhos com lágrimas, não há raiva ou mesmo rancor, apenas dor...

- Filho, Deus escreve...

- É meu caçula, padre! Morreu ontem... Não procurei o senhor porque não entendi nada! Não consigo entender! Peguei a Bíblia e li, li até desmaiar de sono, padre! Não foi por livre arbítrio dos homens que poderiam ter matado ele trocando tiros com a polícia! Não foi castigo para ele! Por Deus! O senhor sabe! Era o menino mais puro e doce!

- Filho... - A voz do padre falha e some num suspiro quando o homem forte e duro diante dele desaba em soluços.

- Não é só o meu menino, padre! Tá cheio de gente boa aí! Nascendo, sofrendo e morrendo enquanto Deus não faz nada! Antes de pegar a Bíblia, peguei um monte de jornal e li, padre! Procurei por Deus e não achei! Nem um sinalzinho, padre! Tem gente má e gente boa sofrendo igual! Gente má sendo premiada, gente má sendo castigada! Será que Deus resolveu nos deixar sofrendo até a morte? Todos nós? E só depois vai premiar os bons e castigar os maus? Por que ele mudou, padre?

Em sua mente, o bom padre busca por explicações, mas a luz de outono sobre as palavras da pobre ovelha que chorava ao seu lado não lhe permitia ver outra verdade além daquela ali tão clara na dor e na pureza daquele homem trabalhador... Então, sentindo-se sozinho como nunca se sentiu, o padre abraçou o amigo e chorou...

sábado, junho 12, 2004

1, 1, 2, 3, 5, 8

Sentada no Louvre ela observa encantada a Monalisa. Num campo de flores um casal de namorados se beija sob a sombra de uma árvore linda que sempre os atrai. Em seu quarto um garoto brinca com uma grande concha de Náutilus. No mirante do Leblon dois amigos se assustam com o vôo barulhento de um zangão e dão graças por estes insetos não serem muito numerosos! Sob o foco de luz em um palco escuro o corpo longilíneo de um bailarino desenha pura harmonia no ar com seus movimentos.

Perdidas entre as cadeiras de um bar as sombras dançam ao redor de uma mesa retangular enquanto as pessoas reclamam da física ou da matemática e rezam louvores à arte e à ordem do universo.

quinta-feira, junho 10, 2004

Blitz! Documentos!

Fazia tempo...

Era um carro amassado, mal tratado mesmo. Vinha pela rua estreita nos recônditos de Ipanema. Distraido, despreocupado até com os homens de uniforme quase fechando a rua dos dois lados, meia dúzia deles em uma única viatura...

Dentro do pobre carrinho as pessoas conversam um tanto alheias às autoridades do lado de fora que acenam em câmera lenta pedindo redução de velocidade... Que até ocorre, mas não o bastante, ou talvez fosse o jeito do simpático automóvel.

- Encosta ai!

Ele encosta...

- O documento está vencido... Habilitação! Identidade! Tem como trazer o documento atual?

Não, não tem...

- Ah! Não conseguimos achar o documento, multa ai...

O olhar do policial não esconde a surpresa "como assim multa ai?" parece esculpido em seus cabelos arrepiados...

Levanta, sai do carro, se mete no meio dos rapazes uniformizados, entrega outra identidade, agora de militar...

Passam uns minutos, nem três! e...

- Pode ir! Estão liberados...

E lá se vai o carrinho chuga-chuga em seu caminho, sem multa, sem problemas...

quarta-feira, junho 09, 2004

Causos - Largo dos Leões - RJ

É um outono frio, mas Gaia decidiu soprar com suavidade esta noite e as sombras do mal iluminado Largo dos Leões escondem os pedestres que passam incógnitos.

Ao lado de uma pracinha povoada de figuras discretas, namorados que se confundem em um só corpo, amigos que conversam silenciosamente, se instala uma pequena casinha cercada de vasos, flores e pequenas árvores.

Um caminho de pedras se insinua tortuoso entre as folhas verdes. São apenas alguns passos até a portinha de onde se derrama uma luz lânguida. Fraca demais para aquecer os dois homens sentados entre as ramagens.

A luminosidade contorna seus rostos perdendo-se na escuridão logo adiante. Um deles fuma um cigarro esquecido enquanto lança um olhar para o horizonte que não está lá. Diante deste homem jovem e barbado senta-se outro, um pouco mais velho, ligeiramente gordo e com os olhos fixos no chão, queixo apoiado nos dedos e cotovelos sobre as pernas.

- Mas foi assim mesmo? - Pergunta o gordinho com um tom preocupado e surpreso...

segunda-feira, junho 07, 2004

Filhos do mal

- Eu sou mau! Sou o Zé Cão! Quem manda aqui na área sou eu e se não gostar encomendo o malandro! Tá entendendo?

Enquanto fala ele cospe e arranha as palavras enchendo-as de ódio e desprezo. Os olhos amarelados fixos no homem encurralado no beco, mergulhado nas sombras, mas extranhamente calmo ao responder...

- Ah... E quem te fez mal, você mesmo? Um dia você acordou e disse "eu sou mal" ou você nasceu assim?

Sem entender o abuso de sua vítima o fascínora avança um passo puxando uma longa faca enferrujada. Ao falar entre o ódio e o orgulho se esconde um tênue fiapo de dúvida.

- Isso aí! Sou filho do demo! Minha mãe se deitava com ele nos cantos escuros lá do barraco! Deitava e berrava que nem uma bezerra!

A vítima se afasta das sombras aproximando-se dele. Zé Cão é um homem grande, mas o sujeito diante dele é enorme ou cresce espalhando-se pelas sombras como a fumaça negra de pneus queimados.

- No começo você não passava de um menino que chorava nos seus sonhos e acordava sem abrir os olhos torcendo para continuar no pesadelo pois lá ao menos você reagia...

- O quê? Quem te falou estas coisas malandro? Tá se fazendo de espertinho? Quer sentir o gosto do ferro atravessando tua goela? Olha aqui!

Josinaldo Antõnio da Silva, o Zé Cão, não tem medo de tamanho, mas os olhos do homem diante dele são como o jato de água das mangueiras da prisão, só que é o seu espírito que eles atingem. As memórias de uma infância distante, esquecida na tentativa de sobreviver desabam sobre ele como o zumbido de balas no meio do tiroteio. Zé está pronto para morrer, até deseja morrer de forma horrível para nunca ser esquecido e sempre ser temido, mas não está pronto para ele mesmo.

- Acorde... Acorde... - A voz do homem parece vir de todos os lados, Josinaldo golpeia para todos os lados com a faca...

Acorda dentro do seu barraco, encharcado em suor... Senta e chora...

Os textos neste blog são exercícios literários e não representam necessariamente as crenças ou convicções do autor

domingo, junho 06, 2004

Orgulho e queda

O brabo é ser o maldito elo perdido e encher o peito como se fôssemos a criação final! ;-)

"Não sou eu, nem sou o outro, sou qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte do tédio que vai de mim ao outro" foi algo assim que Melo de Sá Carneiro escreveu em outro contexto.

Temos certezas demais, convicções demais! Religiosas, sociais, científicas... Se ao menos fôssemos capazes de um pouco mais de humildade e reconhecer que talvez os deuses não sejam como os víamos 2 mil anos atrás... Talvez o nosso sistema de governo pudesse ser melhor... talvez não saibamos manipular sabiamente o código genético das coisas...

O que me assusta não são nossas falhas... É nossa fuga da realidade...

Não se evolui da noite para o dia, mas humildade é uma conquista plausível e ainda há esperanças quando olhamos para as pessoas individualmente ou em coletividades como as que se formam no terceiro setor...

sábado, junho 05, 2004

Voz de Deus ouvidos humanos

Ainda ontem estávamos na idade média e pessoas eram queimadas por bruxaria, não eram mortas a golpe de espada porque a Igreja condenava o derramamento de sange... Eram bruxos todos os acusados de bruxaria, padres fetichistas se apressavam em vasculhar os corpos nús de belas damas em busca dos sinais de bruxaria. Não há como saber quantos morreram, milhares, milhões...

Tudo seguindo a voz de Deus...

Mas isso foi ontem! Hoje não nos apressamos em demonizar grupos que nos incomodem, não encarceramos as pessoas em fábricas de ódio onde são humilhadas ou postas junto com outros demonizados.

sexta-feira, junho 04, 2004

A fantasia do bem

Ligo a tv e um homem carrancudo cospe marimbondos conclamando o mundo a combater o mal que se alastra vindo do oriente médio. Enche-se de ar ao invocar o nome de um Deus todo poderoso a quem todos nós servimos, menos os inimigos. Desligo a tv...

Nas ruas bandos de crianças esfarrapadas despertam medo e raiva nas pessoas de bem que passam protegendo suas bolsas e orando ao mesmo Deus único do homem carrancudo que as crianças sejam jogadas em prisões.

Prisões! Milhares de formas e tipos de ódio e loucura encarcerados em um só lugar sem nada a fazer a não ser segurar nas grades olhando para fora enquanto se une ao deus do homem carrancudo para pedir liberdade, ou a outro deus que lhe dê vingança.

Em nossa fantasia, em nossos delírios, acreditamos na separação eterna entre bem e mal e escolhemos lados numa batalha celestial imaginária...

quinta-feira, junho 03, 2004

Delírio e relidade

Ao ver personagens como Delirium e seus irmãos, os Eternos de Neil Gaiman, podemos acabar nos esquecendo dos nossos próprios delírios...

Somos animais racionais, não muito diferentes de todos os outros... Nosso corpo responde a perigos irreais como todo organismo animal responde às ameaças mortais. Nossos músculos retesam, o sangue se enche de adrenalina e os batimentos se aceleram. No entanto a maioria dos nossos riscos são de outra sorte e raramente ameaçam nossas vidas, ainda que este perigo seja o medo da violência, mas é um perigo imaginário à partir do momento que a violência é uma possibilidade e não um fato presente.

Nos fechamos em cidades, vestimos roupas e tentamos esquecer nossas origens entre florestas e feras. Vivemos uma realidade tão delirante quando a de Delirium. Como ela deixamos o deleite da vida primitiva em troca do delírio de um mundo inventado em nossas fantasias...

quarta-feira, junho 02, 2004

Delirium VII *

Os carros saindo velozes e assustados da boca do túnel desenham riscos coloridos diante do menino sentado no meio do barro úmido no sopé da Rocinha. Um arco-íris de tons de azul, branco e negro até que um brilhante risco amarelo reluz por um instante fazendo o menino rir.

O forte vento do crepúsculo sobe então as ruelas espremidas entre barracos de madeira mal pregada que sacolejam frágeis ante sua passagem. Dentro de um barraco um homem rude, peão de obra forte e de rosto duro, dança desajeitadamente ao som de uma valsa imaginária. Atrás de uma janela um menino vê dragões cuspindo fogo sobre os espigões de São Conrado. Sentada numa cadeira entre dois barracos uma mulher limpa as unhas do pé com uma faquinha imaginando que é uma condessa esquecida pelo seu cavalheiro errante.

A noite traz os espectros das sombras que descem lentamente o morro com seus pacotes de delírio nos bolsos, mas hoje eles também enxergam o que não está lá e descem o resto do caminho disparando tiros para o alto e gritando como moças.

O sopro da noite faz uma curva para o ponto mais alto da favela e encontra a imagem esquálida de uma menina, não mais que treze anos. Seus cabelos verdes, lilás, rosa e amarelo flutuam no ar como se estivesse imersa em água. Ela parece espetar distraidamente algo invisível no ar enquanto contempla circunspecta as luzes que se acendem na cidade.

Num segundo ela está só, no sequinte há uma bela jovem de cabelos negros ao seu lado...

- Kmo voxe mi axo? Ela pergunta sem olhar para trás.
- Não foi difícil seguir o vento... A cidade toda deve saber que você está preocupada!
- Ahuahuaahua! Eu naum tô axim naum! Só num tô filixxx! Tô Xintindo pirdida, mana e... Noxaaaa!! Puquê vc tá mi olhano ixim?
- Você tem mesmo que falar deste jeito?

terça-feira, junho 01, 2004

Delirium VI

Imagine a quantidade de coisas, de vidas e de histórias que se mesclam em um prédio gigantesco como este que serpenteia sobre a Lagoa-Barra! Os carros passam sob ele de vidros fechados enquanto crianças correm pelo playground sem medo do chão que treme orquestrado pelo motor dos carros. Em uma janela uma pessoa observa o fluxo emoldurada pela escuridão do interior do apartamento de paredes cinza.

Seus olhos se arregalam, mas ninguém vê, ninguém o vê nunca! É apenas mais um gari anônimo e seus olhos se arregalam ao ver sobre um dos carros passando abaixo, um Audi amarelo, uma figura horrenda sentada sobre o capô! Gorda e cinza como sua vida! De olhos fundos como os das moças que se entregam a drogas nos corredores do minhocão onde ele mora. Ele tem certeza do que viu, mas dura apenas uma fração de segundo e o carro some de vista seguindo para São Conrado.