domingo, junho 13, 2004

Memórias de Deus

- É padre! Tá ficando difícil colocar os joelhos no chão e rezar...
- Por quê, filho?

Os dois homens caminham pela calçada ao lado de uma obra, a tarde ainda vai caindo, mas a luz já assumiu o tom alaranjado do outono. Ao lado do padre de batina, um homem de mãos grandes e calejadas, rosto duro, mas ohos puros como os dos nossos primos chipanzés. Foi um dia quente e a blusa leve do homem está marcada pelo suor de um dia de trabalho na obra ao lado, onde o bate-estaca ainda martela o chão a cada trinta segundos.

- Deus nos deixou, padre! Antes, ele abria os mares, multiplicava o pão, trazia os mortos de volta à vida e castigava os tiranos que escravizavam seu povo com pragas, como fez no Egito. E agora, padre?

O pobre homem tem os olhos com lágrimas, não há raiva ou mesmo rancor, apenas dor...

- Filho, Deus escreve...

- É meu caçula, padre! Morreu ontem... Não procurei o senhor porque não entendi nada! Não consigo entender! Peguei a Bíblia e li, li até desmaiar de sono, padre! Não foi por livre arbítrio dos homens que poderiam ter matado ele trocando tiros com a polícia! Não foi castigo para ele! Por Deus! O senhor sabe! Era o menino mais puro e doce!

- Filho... - A voz do padre falha e some num suspiro quando o homem forte e duro diante dele desaba em soluços.

- Não é só o meu menino, padre! Tá cheio de gente boa aí! Nascendo, sofrendo e morrendo enquanto Deus não faz nada! Antes de pegar a Bíblia, peguei um monte de jornal e li, padre! Procurei por Deus e não achei! Nem um sinalzinho, padre! Tem gente má e gente boa sofrendo igual! Gente má sendo premiada, gente má sendo castigada! Será que Deus resolveu nos deixar sofrendo até a morte? Todos nós? E só depois vai premiar os bons e castigar os maus? Por que ele mudou, padre?

Em sua mente, o bom padre busca por explicações, mas a luz de outono sobre as palavras da pobre ovelha que chorava ao seu lado não lhe permitia ver outra verdade além daquela ali tão clara na dor e na pureza daquele homem trabalhador... Então, sentindo-se sozinho como nunca se sentiu, o padre abraçou o amigo e chorou...