terça-feira, agosto 24, 2004

Encontro com Yarikh

As nuvens que jogam a garoa fina sobre as pedras portuguesas do calçadão da praia de Copacabana cobrem totalmente a lua minguante, que estaria rindo para mim, enquanto fico ali, parado, olhando para as ondas que se quebram além da faixa de areia.

Gosto da sensação das gotículas, do vento frio que atravessa o tecido mais grosso... faz os ruídos da cidade se perderem ao longe enquanto a memória me joga de volta ao tempo em que a Terra era virgem e o céu não era ofuscado pelas luzes da cidade. Numa noite como esta, até as feras estariam encolhidas nas reentrâncias das rochas ou sob as raízes das árvores mais altas para se proteger do frio do inverno. Olho ao redor, perscrutando a escuridão entre as árvores que existem apenas em minha memória. Os edifícios e luzes modernas não parecem mais do que devaneios diáfanos, ilusões óticas diante da escuridão completa.

A viagem é interrompida por uma imagem que rasga o véu das memórias, projetando-se ao passado até me alcançar. Lá está um banco de pedra na orla, um homem sentado nele de costas para mim; observa o mar escuro com o queixo apoiado nas mãos e os cotovelos sobre os joelhos. Sento-me ao seu lado sem emitir uma palavra e passo a observar a mesma escuridão ruidosa que ele.

- O céu noturno já não tem minha luz... - ele interrompe o silêncio.

- As nuvens a encobriram... Sua luz?

- O exílio dos homens a extinguiu! Sou Yarikh, deus Lua, ou era, alguns milhares de anos antes deste dia e em terras distantes de areias escaldantes.

- Lamento... Nunca ouvi falar... Errr... Exílio dos homens?

- Vocês adoravam a criação, viviam entre todos os seres vivos e seguiam com eles a respiração da Terra que era regida pelas minhas fases. Então se encheram de orgulho, decidiram que o mundo já não lhes bastava, exilaram-se em seus livros, inventaram estranhas religiões e, finalmente, cidades onde o solo é estéril e paredes de pedra escondem o horizonte; vocês se exilaram...

Por alguns segundos ele se cala, olha nos meus olhos pela primeira vez e seu rosto é rígido como a rocha, pálido como a espuma das ondas e seus olhos, negros como a noite. Então, sem tirar os olhos de mim, continua:

- Minha luz já não brilha mais para vocês. Ishtar, Anath e Astartéia já não dançam para o seu prazer. É no exílio - na comida, na ilusão e na soberba - que vocês encontram sua fé! Se algum dia nos olharam e tentaram nos entender, agora só olham suas próprias imagens, seus próprios ídolos de rocha, papel ou palavras...

- "Todo sonho se desfaz um dia... Se demorar demais, vira pesadelo e acordamos chorando, mas sempre acordamos." Imagino que seria isso que um amigo meu diria, se estivesse aqui... Ele geralmente está certo! - digo, lembrando da alegre figura de chapéu emplumado.

- Espero que sim! Espero que sim...

E voltamos a mergulhar nossa atenção no rugir das ondas invisíveis na escuridão da noite sem lua, enquanto a cidade moderna aos poucos vence as brumas do tempo e espalha-se novamente ao nosso redor, trazendo seus ruídos, odores e texturas luminosas...